sábado, 28 de setembro de 2013

Cartas ao meu amigo João: S. Mamede está In'Festa


É assim que encontro a nossa Aldeia, onde eu e tu nascemos e aprendemos a viver.

Mas voltemos àquele cruzamento que começava a ter vida a partir das 6 horas da manhã. O forasteiro relata-nos na sua maneira brejeira uma vida que começa pelo alvorecer da aurora. Fala-nos da sua vida saudável de campista, pois tem tenda para se abrigar, não paga renda, tem um cão que só come palha, porque é mais barata do que a gasolina, e ainda guarda o dono.

O movimento no cruzamento aumenta ao som da sirene dos bombeiros que toca a alvorada e do relógio da igreja que toca as 7 horas. As leiteiras e lavadeiras tomam os seus caminhos em direcção, na sua maioria, ao Porto. No cruzamento ficam os ardinas e engraxador que além da sua actividade, fazem de sinaleiros (muitos e muitos desastres naquele lugar evitaram). Às 7h45 tocam as fábricas e de cinco em cinco minutos voltam a tocar. A última vez que tocam, às 08h00, marcam o desacelerar do formigueiro das pessoas que correm para seus trabalhos para trabalharem oito horas, seis dias por semana.

Entretanto, João, voltou a aparecer O Campista, perguntando se havia alguém que se oferecesse para mostrar alguns lugares da nossa terra. Foi então que um dos presentes se ofereceu para o fazer. Partindo do Lugar da Amieira, na Quinta da do Calem, começou o local por dizer:
    
MISSIURES E MISSIURAS
OLHAI QUE BELEZA ESTA! …
POR ENTRE AS TREVAS DESTE CLARO DIA
VÊ-SE TODA A FREGUESIA
DE S. MAMEDE DE INFESTA.
DAQUI TUDO SE AVISTA:
A AVENIDA DO CONDE
PICOUTOS, QUE SE ESCONDE,
E A CASITA DO CRISTA…
AGORA MEUS SENHORES “ BOIS”
E MINHAS SENHORAS “BOIAS “
ARREPEAI AOS “ DESPOIS “
NAS AVENIDAS….QUE JÓIAS!
SE AS HÁ MAIS LINDAS, NÃO ACHO,
COMO O SOL, QUE AS ALUMINA
E O LAMPIÃO DA ESQUINA
A ALUMIAR CÁ P’RA BAIXO.
O IMPULSO QUE A TERRA DEU
O MAJESTOSO COLISEU
QUE SE VÊ DAQUI… O SÍTIO…
AS ESCOLAS, DESTE LADO,
NO MESMO LADO, O EDIFÍCIO
REPAREM NAQUELE ESTADO
 QUE É UM ESTADO…. INTERESSANTE
HÁ-DE SER REEDIFICADO
MAS TEM DE CAIR PRIMEIRO.
É QUE UMA ESPERANÇA SE ESCONDE …
ESTÁ-SE À ESPERA QUE SE VEJA
EM MANHÃ DE NEVOEIRO,
APARECER OUTRO VISCONDE
COMO O QUE DEU COM ESTA IGREJA…
O RECREIO… AS CRIANÇAS A BULIR…
A CORRER E A DAR GRITOS
JÁ CHEGARAM A AFLIGIR
O SENHOR DOS AFLITOS.
VEJAM OS JARDINS….QUE OMA
DE CRAVOS E VIOLETAS
QUE CRESCEM ESPALHANDO AROMA
PELAS VIELAS E VALETAS…
NO MEIO, ESTÁTUAS P’RA HISTÓRIA
EM BRONZE, EM MÁRMORE E LOUSA
UMA DELAS PARA MEMÓRIA
DO MAJOR RAMIRES DE SOUSA…
AGORA VÊ-SE AO VOLTAR   
PARADA E CUSTA A CRER…
COM O RIO LEÇA A CORRER
E A FÁBRICA DO “LAGE” A ANDAR,
VÊ-SE POUCO, QUASE NADA.
MAS É POR VIA DO SOL
E POR CAUSA DA BANCADA DO CAMPO DO CAMPO DE FUTEBOL
IGREJA VELHA - TÃO  TRISTE -
TÃO VELHA QUE EU NUNCA A VI
POIS A ÚNICA QUE EXISTE
É AQUI.
É AQUI? DISSE O CICERONE
MOALDE, BOA FORTUNA
ONDE O POVO, TODO UFANO.
P’RÁ QUE A GENTE SE
FAZ UMA RIFA POR ANO…
MAIS P’RA FRENTE VÊ-SE A “BARREIRA
S. MAMEDE FICA AQUÉM,
E DALI À SERRADEIRA
E A TERRA DE NINGUÉM
DEPOIS TEMOS O TELHEIRO
QUE TEM MAIS FAMA QUE ALFAMA
P’LOS FADISTAS DE FAMA
E O SANTO CASAMENTEIRO
E A PONTE NOVA? QUE BELEZA  
QUE A NOSSA TERRA ENRIQUECE…
VISTA DE LONGE, PARECE
UMA HERÓICA FORTALEZA,
DE IMPONENTE ARQUITECTURA,
QUE TEVE COMO MODELO
A ELEGANTE CURVATURA
- QUE HÁ NO LOMBO DE UM CAMELO…
O COMBÓIO DE CINTURA?!
QUANDO AS ÁGUAS NÃO ESTÃO TURVAS
LEVA AO BANHO AS CRIATURAS
PELA MÃO MESMO NAS CURVAS,
FAZ MAIS DE 30 VIAGENS,
E TÊM TANTAS CARRUAGENS
QUE O COMBÓIO SEMPRE A ANDAR
LEVA UMA HORA A PASSAR…...
A ESTAÇÃO É…” PRIMAVERA “
DE INVERNO NÃO TEM NINGUÉM
É ALI, QUE A GENTE ESPERA
E SÓ QUANDO O COMBÓIO CHEGA
SE SABE À HORA QUE VEM.
HÁ QUEM VÁ COM CALOR,
LÁ P’RA CIMA… MAS EU ACHO
QUE É MELHOR MUITO MELHOR
IR DA CINTURA P’ RA BAIXO.
ONZE E MEIA! CAVALHEIROS,
NESTE RELÓGIO - UM PORTENTO
C’ ELEGANTES PONTEIROS
QUE SÃO MOVIDOS PELO VENTO
E PELA BRISA DA MANHÃ…
SE QUEREIS AQUI ESPERAR
AO MEIO-DIA OUVIREIS DAR
AS DEZ HORAS DA MANHÃ...
POR ISSO, SEM MAIS ALARDE
VAMOS EMBORA QUE É TARDE…
DAQUI VIRAM O ESPLENDOR
QUE A GENTE VINDOURA HERDA…
MAS QUEREM VER MELHOR…
VÃO À… AMÉRICA
      
          
Por aqui vês até que ponto Serafim Lopes brincava com as palavras. E com ironia criticava, ao seu jeito brejeiro, como tantas vezes nos dizia. Se nos debruçarmos sobre o conteúdo desta peça, damos connosco a pensar como a censura deixou passar esta revista, na qual – em 1943/44 - o autor consegue mostrar o viver dessa época.

Brincando com as suas brejeirices e com belas canções, a obra do mestre percorreu o País todo, levando o povo a conhecer-nos pela terra do CALDO E BROA, esquecendo-se que somos Mamedenses.
    
Adeus, Amigo. Estejas onde estiveres, dá-me o prazer de te lembrar a aldeia onde nascemos.

        

Custóias, 27 de Setembro de 2013  

José Mendonça


sábado, 14 de setembro de 2013

Cartas ao meu amigo João: O nosso Flor


Amigo, há quanto tempo não te dou notícias... mas sabes, certamente que a nossa Aldeia de agora já nada te diz.
Há dias deparei-me defronte ao Flor, que agora está todo chique. Nem por sombras fazes uma ideia de como está transformado. Não se vislumbra um único traço daquela casa de Teatro que conhecíamos, onde ao Domingo havia baile; onde as senhoras e meninas tinham assento em cadeiras, aguardando que os cavalheiros as convidassem para dançar; onde um senhor ao centro da sala observava tudo em seu redor e garantia o respeito e o cumprimento das regras; onde, de tempos a tempos, a dama podia convidar o cavalheiro com quem queria dançar.
Ainda me recordo de, num certo domingo, teres ido ao sapateiro buscar o teu único par de sapatos que lá tinhas levado para consertar. O sapateiro ainda não tinha pegado neles e tu, para não faltares ao baile, foste com um pé calçado e o outro enfiado num chinelo, alegando uma lesão no pé... Ai João, em que trapalhadas te metias!
Pois agora o FLOR - onde aprendemos que a frase Sai de cena quem não é de cena, que as pancadas de Moliére nasceram das peças que  este dirigia com mestria e que era sob a forma de um palavrão que se desejava um bom trabalho ao artista que ia entrar em palco - de teatro tem pouco. É hoje uma invulgar sala de espectáculos, mas o teatro não é seu pilar.
Quantas peças e quantos realizadores lá conhecemos não menciono nenhum porque eles são tantos, que de certeza me esqueceria de alguém. Excepção feita a Serafim Lopes, um simples operário da Companhia Carris do Porto que, como bem te recordas, nas décadas de 1940 a 1950, deu fama à nossa terra, S. Mamede de Infesta, com a revista S. MAMEDE ESTÁ IN’ FESTA.
A peça chegou a andar por todo o País, enchendo as maiores casas de espectáculos. Esgotou por duas vezes nos Coliseus do Porto e de Lisboa. Até nos chamavam ‘Os da Terra do Caldo e Broa’, recordas-te?
E é também com saudade, caro João, que recordo o cruzamento da Rua Godinho Faria com a Avenida do Conde, afinal o ponto de partida do quotidiano mamedense, tão bem representado na peça. Nem as árvores centenárias que nos acompanhavam da igreja ao cruzamento ensombravam as seis badaladas com que os sinos acordavam a nossa gente para mais um dia.
Por essa hora que ditava o raiar precoce de mais um dia já as leiteiras e as lavadeiras levavam as suas labutas. Algumas, até, discutiam como acrescentavam o leite. Neste entretanto iam chegando os homens que vinham do Porto com sacos repletos de jornais. Certamente concordarás comigo, João, se destes homens destacar o maneta, junto à esquina do Talho do Quelhas Lima, que, juntamente com outro ardina cujo nome não me lembro, vendiam cautelas e jornais, e o engraxador, o Zé da Chica.

É este cenário que de realidade se torna ficção e que nos apresenta um personagem que, ao chegar àquele lugar a fervilhar de movimento, com um cãozinho puxando um pequeno carro com palha e uma tenda de campismo, se surpreende com semelhante azáfama:

"Ah! Boa noite!
Eu estou aqui por engano
Saibam Vossas Excelências…
- 43 é o ano
Em que esta função se passa
Mas não tendo idade a graça,
E por mor das aparências,
Eu vou fizer a vossências
Tudo quanto se passou,
Pois vamos, (e eu também vou)
Contar à nossa maneira
Mais moderna, mais brejeira,
Mais ao gosto de hoje em dia,
Que qualquer Manel e Maria
Dos tempos que já lá vão,
São hoje iguais, pois então,
(Co’ a devida diferença),
Na linguagem, que na crença
Tudo continua igual;
Mesmo com vida diferente,
Toda a gente é sempre gente
No bem, tal como no mal.
Hoje já não há leiteiras
Mas naquele tempo havia:
- A Ti Lucinda, a Maria
E a Laura, a do “Enfeite”
Fazendo crescer o leite…
Tudo era diferente, então…
Mas hoje, os que aqui estão
Vêm só p’ra vos lembrar
O que se fazia outrora;
E agora, vou-me embora
Que o engano já vai longo
E até já falei por dois,
Se calhar, já disse asneiras…
Já vêm aí as leiteiras!...
Adeuzinho! Até depois!..."

Nada é como era, a não ser nas minhas memórias e nessas, a nossa Aldeia continua a ser encantadora.


Clique aqui para ver excertos da Revista S. Mamede Está In'Festa: 

Sítio do Flor de Infesta: http://www.flordeinfesta.com/