sábado, 6 de abril de 2013

Lendas do leito do rio Leça (a foz)



Pedreiras no monte de S. Gens e arredores
(arquivo histórico municipal de Matosinhos)

Ainda em Esposade, depois de descermos da capela, deparamo-nos com um largo, onde está afixada uma lápide dizendo que ali se ergueu uma enorme pedreira de onde fora extraída toda a pedra para a construção do Porto de Leixões. Para essa operação, construiu-se uma linha férrea até Matosinhos, tendo os enormes blocos de pedra, que protegem os paredões, sido transportados em vagões pela linha férrea que partia de Esposade, passando por Custóias, Senhora da Hora, Estrada Exterior da Circunvalação (que era, à época, muito desnivelada, sobretudo em altura), indo até à Rotunda da Circunvalação, em Matosinhos, e seguindo a par da praia para Leixões, e que ceifou a vida a muitos pescadores da Póvoa, de Caxinas e de Matosinhos.

Para a construção do porto de mar, havia um enorme guindaste, apelidado de Titan, que assegurava a descarga daqueles enormes blocos em pedra que servem para a protecção do paredão do lado sul. Havia ainda um outro guindaste, na pedreira com o mesmo nome, que foi desmontado quando terminou a construção da doca número 1. O imponente Titan de Matosinhos está dentro do porto. A linha férrea ficou a funcionar da Senhora da Hora para Matosinhos, em tempo de praias. Após a conclusão das docas números 1 e 2, foi definitivamente desactivada.
 
Mas continuando o percurso da área de onde fora tirada a pedra para o Porto de Leixões, entramos na estrada que vai para Perafita, percorrendo talvez cerca de um quilómetro. Passamos pela ponte romana Goimil sobre o rio Leça. Vagueando por entre os campos, este rio foi testemunha do maior desastre ferroviário que, até hoje, houve no nosso país e que ocorreu a cerca de duzentos ou trezentos metros a norte deste lugar, no dia 26 de Julho de 1964.

           Era um domingo solarengo, daqueles que convidam a uma ida à praia. Naquele lugar, passava a linha férrea do Porto com destino à Póvoa do Varzim (linha entre os carris via estreita). Naquele dia, no percurso Póvoa de Varzim-Porto, o comboio vinha completamente sobrelotado. Ao passar naquele lugar, onde hoje circula o Metro de Superfície – o comboio, ao aproximar-se daquela apertada curva, ali existente, foi-se inclinando de tal modo que foi de encontro ao pilar de suporte da ponte. Ora, se a máquina a vapor que puxava o comboio e a primeira carruagem passaram, já as restantes carruagens não tive­ram a mesma sorte, sendo ceifadas pelo pilar da ponte, como uma quina­deira a cortar chapa. Naquele lugar ermo e sem telefones em abundância, morreram cem pessoas. O maquinista disse que ele e outras pessoas andaram cerca de um quilómetro até encontrarem um telefone que lhes permitisse clamar por auxílio, para tamanha tragédia.

       Tenhamos em consideração que, em 1964, não havia telemóveis, a frota automóvel era cerca de menos 25 por cento daquela que existe hoje, a televisão, apesar de existir, só se faria sentir em Lisboa, os bombeiros eram muito menos dos que actualmente existem, o material era obsoleto, as ambulâncias escassas, e o único hospital para feridos era o de Santo António (o S. João era um hospital escolar que apenas acolhia doentes de outros hospitais e que requeriam outros cuidados). Da rádio, saíam incessantes apelos para médicos e enfermeiros, dadores de sangue e pessoal que tivesse carros de caixa aberta, para transportarem feridos ao hospital de Santo António. Formaram-se filas enormes de dadores de sangue. Os primeiros médicos a comparecerem no local nem sequer traziam estetoscópio, e era pelo pulso que se avaliava se a vítima tinha pulsações. Só passada cerca de uma hora, começou a haver uma certa organização. Entretanto, o povo cortava o trânsito nas vias que dessem acesso a Custóias e à estrada do Porto à Póvoa. Do Hospital Escolar de São João, onde estaria para breve a abertura de um serviço de urgência, o povo, entrando por lá dentro, tirava instrumentos cirúrgicos, que estavam encaixotados, para que os médicos pudessem assistir os feridos no local, o que levou à inauguração daquele Serviço de Urgência, em 1964, dada a grande afluência ao hospital de numerosas vítimas daquele grave acidente ferroviário.

Quantos de nós já passaram por aquele lugar, sem nos apercebermos da inscrição que se encontra junto ao pilar causador desta tragédia e que dita assim:


Vós que estais passando
Lembrai-vos dos cem mortos
Que aqui pereceram
E cujas almas
Estarão penando.

                                   26 de Julho de 1964


Feridos, nunca se soube quantos foram, ou, pelo menos, nunca deles tivemos conhecimento, mas devem ter sido muitos.

         Mas voltemos um pouco atrás e regressemos à ponte Goimil sobre o rio Leça ou, conforme dizem vários historiadores, o rio Lethes, por onde andaram os romanos. Pinho Leal diz-nos que percorreram este rio em busca de vestígios de ouro e há quem fale da sua presença em Valongo em busca de ouro, igualmente. A Câmara deste lugar tem tapada a entrada de duas minas que os romanos designavam como Valhes Llongos.

ponte de Goimil
 
Seguindo então o percurso do Leça, desde o local que testemunhou aquele triste acidente ferroviário, vemo-lo passar pelos campos, mirando o monte de S. Brás (sítio agradável, embora um pouco abandonado), composto por duas capelas, denominadas S. Brás e S. Sebastião. Neste monte, existe uma escultura em pedra de uma figura pagã (vulgo, O Homem da Maça), cuja lenda diz que as mulheres que lá se dirigiam para pedir para se casarem e que, passado um ano, já tivessem contraído matrimónio, teriam de levar uma garrafa cheia de vinho. Caso ousassem levar uma garrafa vazia, esta partir-se-ia nas suas cabeças e, por esse motivo, o local estava pejado de vidros
 
Da capelinha que se encontra da parte sul do monte, vê-se o rio Leça serpenteando pelos campos, passando junto de vestígios de uma estação arqueológica romana e seguindo o seu curso a caminho do mar, passando pela Ponte do Carro, lugar lindíssimo com a sua azenha e os seus moinhos.Continuando o Leça, o seu percurso pelo meio de muitos prados que fertiliza com a sua corrente, entra na Quinta de Santa Cruz do Bispo, sempre tão quieto e sereno que se pode determinar para que parte corre. “É para mar” – diz D. Rodrigo da Cunha, no seu Catálogo e História dos Bispos do Porto.

        Mas por que motivo dali avança o Leça tão encrespado? Foi pela quantidade de embarcações que sulcaram as suas águas na quarta-feira, 7 de Maio de 1483 (há quase seis séculos!), quando acompanhavam a bateira que transportava, para o Convento da Conceição, vinda do Porto por via marítima, a imagem de N.ª S.ª da Conceição, esculpida, em Coimbra, pelo santeiro Diogo Pires, e que fora talhada em pedra viva com oito palmos de altura (cf. excerto de Frei Manuel da Esperança, no boletim da Câmara de Matosinhos). Esta foi a única ocasião em que o seu curso se agitou. Foi também por esta época que se formaram dois leitos. A um leito, o Povo chama o rio doce, onde as lavadeiras lavavam roupa; ao outro, chamava o rio salgado, que ficava do lado de Leça de Palmeira, e onde chegou a haver Salinas. 


José Mendonça
in Lendas do leito do rio Leça

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