À dias deixei-me arrastar pelos lugares que nos viram crescer em S. Mamede, João.
Sem dar por isso, dei comigo a observar o sítio onde outrora se situava a nossa
escola e onde, hoje, existe um salão paroquial. Por
longos momentos, deixei-me embalar nos meus pensamentos, recordando as
tropelias que lá fazíamos, de barriga vazia ou, como dizíamos, ‘colada às
costas’ e os célebres ‘prémios’, nome dado pelo professor a dois bolos dados com
uma régua de cinco buracos a todos que chegassem atrasados.
Lembro
que, certo dia, entraste mais tarde e disseste:
- "Senhor Professor, venho de
fazer uma pergunta à minha mãe à qual me respondeu em condições de que nada
concordo”.
Replicou o Senhor Rodrigo com o ‘prémio’. E tu prosseguiste:
- "Perguntei à minha mãe porque é que a nossa terra se chama S. Mamede de Infesta
e ela me respondeu que se calhar é por estar em festa”
Todos
se riram e eis senão quando se ouviu o vozeirão do professor mandar-nos calar.
Veio então a resposta: “Pelo que julgo saber, Infesta é uma elevação de
terreno, vulgarmente denominada por monte. Quanto a S. Mamede, nada sei de
santos, mas dizem-me que a igreja lá dentro tem uma talha dourada bem
trabalhada, assim como belas imagens, uma julgo que trabalhada pelo Soares dos
Reis. Aconselho-vos a darem um passeio pelo que tendes na vossa terra”.
Prosseguiu
contando a história da Igreja de S. Mamede de Infesta: “Certos documentos dizem
que, em certa época, um homem de vossa terra foi novo para o Brasil, onde fez
considerável fortuna. Ao fim de uns tantos anos, lembrando-se que lá longe onde
tinha nascido havia uma igreja pequenina para seu povo, comprometeu-se a enviar
parte de sua fortuna para a construção de uma igreja, essa sim, tão grande e
bonita como a do Senhor de Matosinhos, com duas torres e o prolongamento de uma
rua com a largura igual ao templo, que iria custear integralmente. Assim, escolheu
um conjunto pessoas da sua confiança a quem incumbiu a tarefa de observar a sua
construção. E não é que a comissão entendeu que a construção de duas torres era
um descalabro? Porque não construir uma só? E assim o fizeram, sem dar conhecimento
ao respectivo mecenas, que continuava a custear a obra com que sempre sonhara
para a terra que o viu nascer. Entretanto, essa mesma comissão propôs ao
governo do Reino de então a atribuição do título de Conde de S. Mamede ao
imigrante que deixou os seus. Mas o pior estava para vir: quando, mediante
convite para a inauguração do edifício, e acompanhado pelas mais diversas
entidades, o Conde deparou com uma igreja de uma só torre ao entrar na avenida,
imediatamente mandou dar meia volta ao coche e, recusando-se terminantemente a
lá entrar, voltou para o Brasil, de onde não mais deu notícias”.
Por
teres entrado mais tarde na aula, o professor deu-nos uma lição de valores que
nada tinha da matéria desse dia, e mais, aconselhou-nos a valorizar os lugares
em que nascemos e vivemos. Ainda
nessa aula, o professor desafiou-nos a decifrar o que estava escrito em letras
romanas por cima do portão do cemitério. Chegamos ao ponto de ir à Junta da Freguesia
e até ao Senhor Padre, para ele darmos resposta ao desafio: "Ontem carne, hoje pó, amanhã nada – 1775".
Desta
lição de valores da nossa terra vista à distância (já lá vão sessenta e cinco
anos, João), não posso deixar de destacar o propósito de um professor
forasteiro de incutir junto dos seus alunos o gosto pelo que os rodeava e a
recomendação de conservação pelos valores culturais inerentes.
Quanto ao
Cruzeiro com o Cristo Crucificado que vimos junto da antiga cabina de
electricidade, informo-te que já foi mudado duas vezes e que, presentemente,
está no adro da Igreja, de costas para o templo, observando a avenida do Conde, com prédios altos e
baixos, duas faixas de trânsito, mediadas por um canteiro de flores. Se Cristo falasse…
É o progresso,
meu amigo, bem sei, mas é com tristeza que vejo os lugares dos nossos sonhos
desaparecer.
José Mendonça
in Lembranças de um tempo já
passado
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