Sabes João: é com
imensa pena que te informo que o Botelho também nos deixou. Um amigo a quem a natureza
deu uma perna inteira e metade de outra, como, em jeito de humor negro, dizia.
Botelho
afirmava ser herdeiro do Toninho Marques que, infelizmente, estava na mesma
situação e que era uma figura de classe monetária superior à media, mas que o
povo admirava pela sua enorme modéstia e invulgar habilidade, não só a jogar bilhar
com a cana de um foguete, mas também como guitarrista (chegou, aliás, a tocar
na rádio).
Pois
é, João, pois além de nós, poucos saberiam que aquele Botelho que andava a
maior parte do tempo ébrio, sofria imenso, como nos confessou. Carregava um
enorme sentimento de culpa pelo facto de sua mãe ter falecido após o parto e,
indirectamente, ter sido dado como causador da morte. Para desviar a conversa, com
os olhos rasos de lágrimas, dizia que era um felizardo, pois, da casa dele para
o Cantinho onde se perdia, tinha a rua cheia de água e assim tinha uma piscina,
coisa que só os ricos tinham prazer de ter.
Aqui
há uns tempos atrás, várias pessoas comoveram-se pela sua situação e levaram-no
para o centro da terceira idade. Amigos e conhecidos davam-lhe algumas moedas
para o tabaco. Não é que, certa vez, o vejo chegar-se à minha beira e quando me
preparava para lhe algumas moedas ele nada de mim quis e, com imensa
satisfação, me deu a grata notícia que tinha feito uma desintoxicação e queria,
à viva força, recusar a minha oferta. A satisfação era nele tão grande que nos
abraçamos comovidos. Passado pouco tempo soube que tinha falecido. Sabes, João,
a gente vai passando pela vida dizendo que ela anda devagar, mas passa-se
exactamente o contrário; nós é que andamos depressa e ao Botelho a vida só
tarde lhe deu uns míseros sorrisos.
José Mendonça
in
Lembranças de um tempo já passado
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