sábado, 20 de abril de 2013

Cartas ao meu amigo João: figuras da nossa terra II.


Sabes João: é com imensa pena que te informo que o Botelho também nos deixou. Um amigo a quem a natureza deu uma perna inteira e metade de outra, como, em jeito de humor negro, dizia.

Botelho afirmava ser herdeiro do Toninho Marques que, infelizmente, estava na mesma situação e que era uma figura de classe monetária superior à media, mas que o povo admirava pela sua enorme modéstia e invulgar habilidade, não só a jogar bilhar com a cana de um foguete, mas também como guitarrista (chegou, aliás, a tocar na rádio).

Pois é, João, pois além de nós, poucos saberiam que aquele Botelho que andava a maior parte do tempo ébrio, sofria imenso, como nos confessou. Carregava um enorme sentimento de culpa pelo facto de sua mãe ter falecido após o parto e, indirectamente, ter sido dado como causador da morte. Para desviar a conversa, com os olhos rasos de lágrimas, dizia que era um felizardo, pois, da casa dele para o Cantinho onde se perdia, tinha a rua cheia de água e assim tinha uma piscina, coisa que só os ricos tinham prazer de ter.

Aqui há uns tempos atrás, várias pessoas comoveram-se pela sua situação e levaram-no para o centro da terceira idade. Amigos e conhecidos davam-lhe algumas moedas para o tabaco. Não é que, certa vez, o vejo chegar-se à minha beira e quando me preparava para lhe algumas moedas ele nada de mim quis e, com imensa satisfação, me deu a grata notícia que tinha feito uma desintoxicação e queria, à viva força, recusar a minha oferta. A satisfação era nele tão grande que nos abraçamos comovidos. Passado pouco tempo soube que tinha falecido. Sabes, João, a gente vai passando pela vida dizendo que ela anda devagar, mas passa-se exactamente o contrário; nós é que andamos depressa e ao Botelho a vida só tarde lhe deu uns míseros sorrisos. 

José Mendonça

in Lembranças de um tempo já passado

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