sábado, 20 de abril de 2013

Cartas ao meu amigo João: A nossa terra


João, aonde quer que estejas, se vires a nossa Terra não a conheces. Das quintas que eram o encanto dos amigos que por cá andam conta-se pouco mais do que os dedos das duas mãos. Às vezes, alguns de nós juntam-se num café a que pomposamente damos o nome de Sindicato (pensas, e bem, “mas quando lá estive havia o sindicato e descontei, mas não se podia reunir…” mas isso é outra história).

Vamos falar dos lugares dos nossos sonhos. Olha: lembras-te daqueles irmãos que faziam férias numa daquelas quintas, um dos quais jogou contigo futebol e tu dizias "a vida está para estes dois?" Pois fica sabendo que hoje um é uma voz forte do futebol cá do Burgo (que, de uma forma irónica vai mandando recados para Lisboa, que até eu gostava de dizer, mas não só de futebol) e o outro uma figura notável no campo da medicina.

A tua, nossa, terra tornou-se cosmopolita e os nossos costumes e lugares foram desaparecendo. Já não se ouve a sirene dos bombeiros e os sinos da igreja a tocar para indicarem que é meio-dia. E por falar em sinos, lembras-te que não tínhamos autorização para entrar em casa depois das Santíssimas Trindades tocadas pelo sino da Igreja. E lembras-te, certo dia, depois de vermos apenas duas beatas dentro da Igreja, de termos subido ao cimo da torre e embrulhado em trapos os badalos dos sinos? E que, naquele dia, a nossa terra não ouviu os sinos tocar as Santíssimas Trindades por causa de uns garotos que se os pais soubessem quem eram não se livrariam de um concerto de porrada e que, assim, entramos mais tarde do que o costume?

E por falar em concerto, nem vais acreditar: hoje fazem-se bichas para assistir a espectáculos de música. Tal como nós fazíamos para trazer o que precisávamos para termos alguma coisa para entreter a fome em que vivíamos. Naquela altura, amigo, as bichas eram para alimentar. Hoje, amigo, é para divertir. Chega-se ao cúmulo de se passar dias e noites para ver um espectáculo de uma ou duas horas e, João, não vejo o mesmo para a procura de um emprego.

Ainda me lembro de te ver, amigo, nos degraus do coreto da nossa terra quando, com as lágrimas nos olhos, me dizias naquele dia invernoso, que o mestre e patrão te disse que, por estar a chover, não havia trabalho. Era o segundo dia que o mestre vos mandava embora e nada ganhavam. E além de nada teres no fim-de-semana, teus pais nada recebiam. Sofrias por ti e por eles. Nasceste uns anos mais cedo, pois hoje serias um fidalgo e o teu ofício de construção civil, uma arte (nem sempre devidamente reconhecida). Nada te faltaria e não morrerias tão novo de tuberculose. Tu ajudaste a começar a erguer o Hospital de S. João. Morreste antes da descoberta do cientista britânico que, ao deixar por esquecimento no laboratório determinado produto, deu com ele estragado ao outro dia e, ao examinar os fungos, reconheceu determinadas matérias próprias, tendo daí nascido o essencial para a descoberta da Penicilina.


José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

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