João,
aonde quer que estejas, se vires a nossa Terra não a conheces. Das quintas que
eram o encanto dos amigos que por cá andam conta-se pouco mais do que os dedos
das duas mãos. Às vezes, alguns de nós juntam-se num café a que pomposamente
damos o nome de Sindicato (pensas, e
bem, “mas quando lá estive havia o
sindicato e descontei, mas não se podia reunir…” mas isso é outra
história).
Vamos
falar dos lugares dos nossos sonhos. Olha: lembras-te daqueles irmãos que
faziam férias numa daquelas quintas, um dos quais jogou contigo futebol e tu
dizias "a vida está para estes dois?" Pois fica sabendo que hoje um é uma voz
forte do futebol cá do Burgo (que, de uma forma irónica vai mandando recados
para Lisboa, que até eu gostava de dizer, mas não só de futebol) e o outro uma
figura notável no campo da medicina.
A
tua, nossa, terra tornou-se cosmopolita e os nossos costumes e lugares foram
desaparecendo. Já não se ouve a sirene dos bombeiros e os sinos da igreja a
tocar para indicarem que é meio-dia. E por falar em sinos, lembras-te que não
tínhamos autorização para entrar em casa depois das Santíssimas Trindades
tocadas pelo sino da Igreja. E lembras-te, certo dia, depois de vermos apenas
duas beatas dentro da Igreja, de termos subido ao cimo da torre e embrulhado em
trapos os badalos dos sinos? E que, naquele dia, a nossa terra não ouviu os
sinos tocar as Santíssimas Trindades por causa de uns garotos que se os pais
soubessem quem eram não se livrariam de um concerto de porrada e que, assim,
entramos mais tarde do que o costume?
E
por falar em concerto, nem vais acreditar: hoje fazem-se bichas para assistir a
espectáculos de música. Tal como nós fazíamos para trazer o
que precisávamos para termos alguma coisa para entreter a fome em que vivíamos.
Naquela altura, amigo, as bichas eram para alimentar. Hoje, amigo, é para
divertir. Chega-se ao cúmulo de se passar dias e noites para ver um espectáculo
de uma ou duas horas e, João, não vejo o mesmo para a procura de um emprego.
Ainda
me lembro de te ver, amigo, nos degraus do coreto da nossa terra quando, com as
lágrimas nos olhos, me dizias naquele dia invernoso, que o mestre e patrão te
disse que, por estar a chover, não havia trabalho. Era o segundo dia que
o mestre vos mandava embora e nada ganhavam. E além de nada teres no
fim-de-semana, teus pais nada recebiam. Sofrias por ti e por eles. Nasceste uns
anos mais cedo, pois hoje serias um fidalgo e o teu ofício de construção civil,
uma arte (nem sempre devidamente reconhecida). Nada te faltaria e não morrerias
tão novo de tuberculose. Tu ajudaste a começar a erguer o Hospital de S. João.
Morreste antes da descoberta do cientista britânico que, ao deixar por
esquecimento no laboratório determinado produto, deu com ele estragado ao outro
dia e, ao examinar os fungos, reconheceu determinadas matérias próprias, tendo
daí nascido o essencial para a descoberta da Penicilina.
José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado
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