sábado, 20 de abril de 2013

Cartas ao meu amigo João: figuras da nossa terra I.


Olha João: ainda há bem pouco tempo dei comigo a observar a nossa estação de caminhos-de-ferro e lembrei-me daqueles pequeninos canteiros de flores que chegaram a ganhar prémios internacionais. Nada disso existe agora, mas ainda lá estão - por quanto tempo não sei - aqueles lindos azulejos, cheios de pó, que o escritor Hélder Pacheco, numa de suas obras, classifica como dos mais bonitos que conhece fora da cidade do Porto.

Lembrei-me das imensas viagens que de comboio fazíamos até Senhora da Hora e Matosinhos, viagens essas que acabaram em pó e cinza, como está escrito por cima da porta do cemitério, onde, além de ti, está o Zeca da farmácia, que não chegou a terminar a história do seu Infesta (dizem que a família guarda os seus apontamentos religiosamente) e o Joaquim da farmácia, que atendia toda a gente, nem que para isso tivesse de se levantar de madrugada.

Lembras-te daquela história daquele embriagado que, ao passar pela farmácia às três horas da madrugada, reparou na publicidade de um chá com o nome de ‘xamate’ e que tocou à campainha para perguntar o nome do chá que estava na montra? Pois o Joaquim perdeu a calma e, zangado, respondeu “É o raio que o parta !” Ao que o bêbado responde: "pois olhe que ninguém diria, pois de tal forma está mal escrito!"

Quando questionado sobre o assunto, o Joaquim apenas sorria, motivo pelo qual nunca se soube onde acabava a anedota e começava a verdade. Era assim o Quim da Farmácia Lino, de S. Mamede. Como se pode esquecer um Homem (assim mesmo: com um "H") sempre pronto a atender alguém vinte e quatro horas por dia?

Lembras-te, amigo, das corridas que fazíamos, com as sapatilhas a desfazer-se, naquela rua comprida que terminava numa descida onde passava o caminho-de-ferro, com uma passagem sem guarda e com uma tabuleta em betão que rezava assim pare, escute e olhe? A rua chamava-se Avenida Marechal Gomes da Costa e tu, muitas vezes, perguntavas porque se chamava avenida e não rua, visto, de um lado, ter meia dúzia de casas e, do outro, o cemitério (cujo metro quadrado, segundo dizem, é três ou quatro vezes mais caro do que aquele que é necessário para construir uma casa).

Ora no final dessa mesma rua, junto à linha-férrea, fez-se agora uma ponte que termina do outro lado da linha. Na minha opinião, devia lá colocar-se a tabuleta Pare, escute e olhe… os campos, invadidos por uma construção ininterrupta ao longo de sessenta anos de prédios.


José Mendonça

in Lembranças de um tempo já passado

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