Olha João: ainda há bem pouco tempo dei comigo a observar a
nossa estação de caminhos-de-ferro e lembrei-me daqueles pequeninos canteiros
de flores que chegaram a ganhar prémios internacionais. Nada disso existe
agora, mas ainda lá estão - por quanto tempo não sei - aqueles lindos azulejos,
cheios de pó, que o escritor Hélder Pacheco, numa de suas obras, classifica
como dos mais bonitos que conhece fora da cidade do Porto.
Lembrei-me das imensas viagens que de comboio
fazíamos até Senhora da Hora e Matosinhos, viagens essas que acabaram em pó e
cinza, como está escrito por cima da porta do cemitério, onde, além de ti, está
o Zeca da farmácia, que não chegou a terminar a história do seu Infesta (dizem que a família guarda
os seus apontamentos religiosamente) e o Joaquim da farmácia, que atendia toda
a gente, nem que para isso tivesse de se levantar de madrugada.
Lembras-te daquela história daquele embriagado que, ao
passar pela farmácia às três horas da madrugada, reparou na publicidade de um
chá com o nome de ‘xamate’ e que tocou à campainha para perguntar o nome do chá
que estava na montra? Pois o Joaquim perdeu a calma e, zangado, respondeu “É o
raio que o parta !” Ao que o bêbado responde: "pois olhe que ninguém diria, pois de tal forma está mal escrito!"
Quando questionado sobre o assunto, o Joaquim apenas sorria,
motivo pelo qual nunca se soube onde acabava a anedota e começava a verdade. Era
assim o Quim da Farmácia Lino, de S. Mamede. Como se pode esquecer um Homem (assim mesmo: com um "H") sempre pronto a atender alguém vinte e quatro horas por dia?
Lembras-te,
amigo, das corridas que fazíamos, com as sapatilhas a desfazer-se, naquela rua
comprida que terminava numa descida onde passava o caminho-de-ferro, com uma
passagem sem guarda e com uma tabuleta em betão que rezava assim pare, escute e olhe? A rua chamava-se Avenida
Marechal Gomes da Costa e tu, muitas vezes, perguntavas porque se chamava avenida e não rua, visto, de um lado, ter meia dúzia de casas e, do outro, o
cemitério (cujo metro quadrado, segundo dizem, é três ou quatro vezes mais caro
do que aquele que é necessário para construir uma casa).
Ora
no final dessa mesma rua, junto à linha-férrea, fez-se agora uma ponte que
termina do outro lado da linha. Na minha opinião, devia lá colocar-se a tabuleta
Pare, escute e olhe… os campos, invadidos por uma construção
ininterrupta ao longo de sessenta anos de prédios.
José Mendonça
in
Lembranças de um tempo já passado
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