sábado, 14 de setembro de 2013

Cartas ao meu amigo João: O nosso Flor


Amigo, há quanto tempo não te dou notícias... mas sabes, certamente que a nossa Aldeia de agora já nada te diz.
Há dias deparei-me defronte ao Flor, que agora está todo chique. Nem por sombras fazes uma ideia de como está transformado. Não se vislumbra um único traço daquela casa de Teatro que conhecíamos, onde ao Domingo havia baile; onde as senhoras e meninas tinham assento em cadeiras, aguardando que os cavalheiros as convidassem para dançar; onde um senhor ao centro da sala observava tudo em seu redor e garantia o respeito e o cumprimento das regras; onde, de tempos a tempos, a dama podia convidar o cavalheiro com quem queria dançar.
Ainda me recordo de, num certo domingo, teres ido ao sapateiro buscar o teu único par de sapatos que lá tinhas levado para consertar. O sapateiro ainda não tinha pegado neles e tu, para não faltares ao baile, foste com um pé calçado e o outro enfiado num chinelo, alegando uma lesão no pé... Ai João, em que trapalhadas te metias!
Pois agora o FLOR - onde aprendemos que a frase Sai de cena quem não é de cena, que as pancadas de Moliére nasceram das peças que  este dirigia com mestria e que era sob a forma de um palavrão que se desejava um bom trabalho ao artista que ia entrar em palco - de teatro tem pouco. É hoje uma invulgar sala de espectáculos, mas o teatro não é seu pilar.
Quantas peças e quantos realizadores lá conhecemos não menciono nenhum porque eles são tantos, que de certeza me esqueceria de alguém. Excepção feita a Serafim Lopes, um simples operário da Companhia Carris do Porto que, como bem te recordas, nas décadas de 1940 a 1950, deu fama à nossa terra, S. Mamede de Infesta, com a revista S. MAMEDE ESTÁ IN’ FESTA.
A peça chegou a andar por todo o País, enchendo as maiores casas de espectáculos. Esgotou por duas vezes nos Coliseus do Porto e de Lisboa. Até nos chamavam ‘Os da Terra do Caldo e Broa’, recordas-te?
E é também com saudade, caro João, que recordo o cruzamento da Rua Godinho Faria com a Avenida do Conde, afinal o ponto de partida do quotidiano mamedense, tão bem representado na peça. Nem as árvores centenárias que nos acompanhavam da igreja ao cruzamento ensombravam as seis badaladas com que os sinos acordavam a nossa gente para mais um dia.
Por essa hora que ditava o raiar precoce de mais um dia já as leiteiras e as lavadeiras levavam as suas labutas. Algumas, até, discutiam como acrescentavam o leite. Neste entretanto iam chegando os homens que vinham do Porto com sacos repletos de jornais. Certamente concordarás comigo, João, se destes homens destacar o maneta, junto à esquina do Talho do Quelhas Lima, que, juntamente com outro ardina cujo nome não me lembro, vendiam cautelas e jornais, e o engraxador, o Zé da Chica.

É este cenário que de realidade se torna ficção e que nos apresenta um personagem que, ao chegar àquele lugar a fervilhar de movimento, com um cãozinho puxando um pequeno carro com palha e uma tenda de campismo, se surpreende com semelhante azáfama:

"Ah! Boa noite!
Eu estou aqui por engano
Saibam Vossas Excelências…
- 43 é o ano
Em que esta função se passa
Mas não tendo idade a graça,
E por mor das aparências,
Eu vou fizer a vossências
Tudo quanto se passou,
Pois vamos, (e eu também vou)
Contar à nossa maneira
Mais moderna, mais brejeira,
Mais ao gosto de hoje em dia,
Que qualquer Manel e Maria
Dos tempos que já lá vão,
São hoje iguais, pois então,
(Co’ a devida diferença),
Na linguagem, que na crença
Tudo continua igual;
Mesmo com vida diferente,
Toda a gente é sempre gente
No bem, tal como no mal.
Hoje já não há leiteiras
Mas naquele tempo havia:
- A Ti Lucinda, a Maria
E a Laura, a do “Enfeite”
Fazendo crescer o leite…
Tudo era diferente, então…
Mas hoje, os que aqui estão
Vêm só p’ra vos lembrar
O que se fazia outrora;
E agora, vou-me embora
Que o engano já vai longo
E até já falei por dois,
Se calhar, já disse asneiras…
Já vêm aí as leiteiras!...
Adeuzinho! Até depois!..."

Nada é como era, a não ser nas minhas memórias e nessas, a nossa Aldeia continua a ser encantadora.


Clique aqui para ver excertos da Revista S. Mamede Está In'Festa: 

Sítio do Flor de Infesta: http://www.flordeinfesta.com/

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