sábado, 26 de abril de 2014

Uma noite deslumbrante


Através da janela do aposento onde estou a escrever deparo-me com um dia de nevoeiro, triste, deprimente. É então que me lembro de uma noite que me fascinou e que guardo como um momento belo da minha vida que não resisto a descrever, para que só para mim não fique.

Helena Vilas Boas: Telhados do Porto


Certa noite, debruçado sobre o muro que rodeia o largo da Sé do Porto, via a meus pés descansando o meu Porto laborioso, depois de um longo dia de trabalho.
 Atrás de mim, o templo da Sé e o largo da Vandoma, onde, em tempos, chegou a haver uma feira. Algures no templo ainda se encontram sinais de marcação, mostrando a medida de um metro por onde se media fazendas. Do outro lado, numa pedra, está gravado um peixe (a marca cristã).
 Ao meu lado, o Palácio do Bispo e, em baixo, o largo da Igreja de S. Lourenço, vulgarmente chamada Igreja dos Grilos, pelo facto de os frades jesuítas usarem um fraque. No seu interior está o túmulo do Marquês de Távora, fidalgo que muito contribuiu para a construção daquele templo. A palavra Távora inscrita no túmulo encontra-se riscada, por ordem do Marquês de Pombal. Fora da igreja, no topo da entrada, passa despercebido o brasão dos Távoras.
 Ao fundo, a rua do Arco de Santana, no qual se baseou Almeida Garrett, aquando do seu aquartelamento na Igreja dos Grilos, para escrever um de muitos romances. Da rua que o escritor via com um arco, resta apenas o nome e um nicho com a imagem da Senhora de Santana.
 Parafraseando um poeta da minha terra, Avelino Carneiro, nos versos dedicados à cidade Invicta, eu via aquelas ruas estreitinhas, as casas velhinhas, os telhados pobrezinhos e o meu Porto dormindo, depois de um dia de trabalho, numa noite em que o silêncio era a minha companhia.
 Dei comigo a pensar quão belos eram aqueles momentos e como fazia parte de um quadro onde pintada estava uma cidade que tem tanto de bonito como de modesto e histórico. Foi neste enquadramento que o silêncio deu lugar a uma voz que invadia os meus ouvidos, perturbando meus sentidos e embriagando-me deliciosamente.
            Por momentos senti que estava sonhando. Pensei depois que aquela melodia que rompia o silêncio podia estar a ser passada por uma qualquer estação de rádio. Cedo conclui que não se tratava nem de um sonho, nem de uma transmissão radiofónica. Resolvi ir ao encontro de quem me estava a dar o privilégio de revestir o encanto daquele lugar com a mais bela banda sonora alguma vez ouvida. Impelido pelo luar e por aquela maravilhosa e fascinante voz lírica abandonei o lugar de Pena Ventosa.
 Desci a rua Escura, em direcção à rua Sá da Bandeira, a qual se encontrava fechada ao trânsito, em virtude de, na Praça D. João I estar a decorrer um espectáculo do cantor lírico Andrea Bocelli, promovido por uma relevante instituição bancária. A praça encontrava-se cheia de cadeiras ocupadas pela elite do Porto, espelhando, tal qual reflexo na então existente fonte, a diferença que faz o vil metal. A cidade modesta dava lugar a um espaço vedado ao trânsito, que representava o epicentro daquela voz maravilhosa que ecoava pelo resto da urbe.
Soube, depois, através da Imprensa, que o cantor havia pedido o adiamento do espectáculo, na sequência de um convite para actuar na Casa Branca, nos EUA, naquele dia, pedido esse que foi negado, tendo o Administrador do Banco que o contratara afirmado que o tempo em que Portugal não tinha dinheiro nem para fazer cantar um cego cessara.
 Pelas vidraças de minha casa é já noite, mas, apesar de a invernia teimar em ficar, a recordação deste episódio torna o dia mais suave.


Custóias, 12 de Fevereiro de 2013
José Mendonça

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