Através da janela do
aposento onde estou a escrever deparo-me com um dia de nevoeiro, triste,
deprimente. É então que me lembro de uma noite que me fascinou e que guardo
como um momento belo da minha vida que não resisto a descrever, para que só
para mim não fique.
Helena Vilas Boas: Telhados do Porto
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Certa noite, debruçado
sobre o muro que rodeia o largo da Sé do Porto, via a meus pés descansando o
meu Porto laborioso, depois de um longo dia de trabalho.
Atrás de mim, o templo da
Sé e o largo da Vandoma, onde, em tempos, chegou a haver uma feira. Algures no templo
ainda se encontram sinais de marcação, mostrando a medida de um metro por onde
se media fazendas. Do outro lado, numa pedra, está gravado um peixe (a
marca cristã).
Ao meu lado, o Palácio do
Bispo e, em baixo, o largo da Igreja de S. Lourenço, vulgarmente chamada Igreja dos Grilos, pelo facto de os
frades jesuítas usarem um fraque. No seu interior está o túmulo do Marquês de
Távora, fidalgo que muito contribuiu para a construção daquele templo. A
palavra Távora inscrita no túmulo
encontra-se riscada, por ordem do Marquês de Pombal. Fora da igreja, no topo da
entrada, passa despercebido o brasão dos Távoras.
Ao fundo, a rua do Arco de
Santana, no qual se baseou Almeida Garrett, aquando do seu aquartelamento na
Igreja dos Grilos, para escrever um de muitos romances. Da rua que o escritor
via com um arco, resta apenas o nome e um nicho com a imagem da Senhora de
Santana.
Parafraseando um poeta da
minha terra, Avelino Carneiro, nos versos dedicados à cidade Invicta, eu via
aquelas ruas estreitinhas, as casas velhinhas, os telhados pobrezinhos e o meu
Porto dormindo, depois de um dia de trabalho, numa noite em que o silêncio era
a minha companhia.
Dei comigo a pensar quão
belos eram aqueles momentos e como fazia parte de um quadro onde pintada estava
uma cidade que tem tanto de bonito como de modesto e histórico. Foi neste
enquadramento que o silêncio deu lugar a uma voz que invadia os meus ouvidos, perturbando
meus sentidos e embriagando-me deliciosamente.
Por
momentos senti que estava sonhando. Pensei depois que aquela melodia que rompia
o silêncio podia estar a ser passada por uma qualquer estação de rádio. Cedo
conclui que não se tratava nem de um sonho, nem de uma transmissão radiofónica.
Resolvi ir ao encontro de quem me estava a dar o privilégio de revestir o
encanto daquele lugar com a mais bela banda sonora alguma vez ouvida. Impelido
pelo luar e por aquela maravilhosa e fascinante voz lírica abandonei o lugar de
Pena Ventosa.
Desci a rua Escura, em
direcção à rua Sá da Bandeira, a qual se encontrava fechada ao trânsito, em
virtude de, na Praça D. João I estar a decorrer um espectáculo do cantor lírico
Andrea Bocelli, promovido por uma relevante instituição bancária. A praça
encontrava-se cheia de cadeiras ocupadas pela elite do Porto, espelhando, tal
qual reflexo na então existente fonte, a diferença que faz o vil metal. A
cidade modesta dava lugar a um espaço vedado ao trânsito, que representava o
epicentro daquela voz maravilhosa que ecoava pelo resto da urbe.
Soube, depois, através da
Imprensa, que o cantor havia pedido o adiamento do espectáculo, na sequência de
um convite para actuar na Casa Branca, nos EUA, naquele dia, pedido esse que
foi negado, tendo o Administrador do Banco que o contratara afirmado que o
tempo em que Portugal
não tinha dinheiro nem para fazer cantar um cego cessara.
Pelas vidraças de minha
casa é já noite, mas, apesar de a invernia teimar em ficar, a recordação deste
episódio torna o dia mais suave.
Custóias, 12 de Fevereiro de 2013
José Mendonça
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