sábado, 8 de junho de 2013

Existem homens que até depois de mortos são perigosos

É o grande mestre da narrativa densa, rápida e de grande objectividade. Inteiramente persuasivo na sua maneira de escrever, assim o diz Óscar Lopes.


Ao ler sobre esta figura insuspeita da nossa Literatura Nacional que é o Camilo Castelo Branco, tive a curiosidade de vasculhar sobre a vida deste homem de letras e sobre a sua obra que se calcula prolongar em cerca 40 anos (desde 1850 a 1890). Nesse espaço de tempo dizem os biógrafos (que nem sempre são fantasiosos) ‘só’ isto: 180 volumes num total de 54.000 páginas; 30.000 páginas correspondentes aos 133 títulos de obras originais; 2000 polémicas; 2600 escritos e avulsos reunidos por Júlio Dias da Costa em 5 volumes; 569 páginas das obras alheias que verteu para nossa língua (14 títulos, como indica Oldemiro César ); 1400 páginas do conjunto de livros revistos ou anotados por Camilo; 1000 relativas às edições, ou reedições de manuscritos de sua responsabilidade; 5000 de correspondência.

A esta descrição feita por Alexandre Cabral, acrescentam-se milhares de cartas destruídas pelo próprio Camilo, principalmente as dirigidas a Ana Plácido. Temos um conjunto de obras como o Amor De Perdição, A Corja, A Queda De Um Anjo, Memórias De Cárcere, Mistérios De Lisboa I, II, III, Onde Está A Felicidade, O Bem E O Mal, O Retrato De Ricardina, O Judeu, Novelas Do Minho e tantas outras que totalizam mais de uma centena de obras.

Dei-me à curiosidade de tentar descrever este homem e foi ao ler a sua biografia e ver a forma sofrida com que escrevia para sustentar os seus, que me senti impelido a reflectir acerca da sua revolta:

“Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue para o sustento de uma família. A luz dos meus olhos bruxuleava já nas vascãs da cegueira. E eu escrevia sempre.” - Camilo Castelo Branco

Foste um escritor maldito. Pensar que ainda hoje não se pode dizer mal dos poderosos, e tu o fazias, nomeando a classe daqueles que vegetavam no Palácio da Bolsa ou chamando ao lugar “o palheiro”… um deles procurou-te para que lhe compusesses um poema para oferecer à sua amante, tendo, para o efeito, oferecido um cavalo que pôs à tua porta. Então afirmaste: “Para que quero eu um cavalo, se nem dinheiro tenho para a palha para o sustentar?”

Foste considerado o maior escritor da Península e escreveste o livro de amor mais lido em Portugal. Com base nele fizeram-se filmes, como o Amor de Perdição, e peças de teatro O Morgado De Fafe Amoroso, entre muitas mais. Escreveste poesia da qual não resisto a citar um poema já pressentindo o teu fim:


Alma atribulada

Ó’ alma atribulada, corta o laço
da torva angústia que te cinge á vida
Vai, foge para Deus, ou para o espaço…
Ou nada ou Deus, que importa? Eis-te remida

Não tiveste na vida um dia de escasso
De paz e de alegria’ Escurecida
te foi sempre a existência, desvalida,
e cortada de abismos, passo a passo


Vai’ Não leves saudades do que deixas,
Se a fé em melhor mundo te preluz,
Alma gemente, por assim te queixas?

Desprendeste a sorrir, da horrenda cruz
Em que tanto penaste? Os olhos fechas ?
Abre os d’alma, e verás que infinda luz.

Foste um alvo a abater pela burguesia, eras um escritor com créditos já reconhecidos pelo povo, que via em ti um homem de letras que tão bem descrevia os seus costumes e os seus lugares.

Herculano, já no seu retiro de Vale de Lobos, tinha-te como grande escritor.
Quando o rei D. Pedro V que te visitou por duas vezes na cadeia da Relação no Porto e mandou oferecer-te dois contos de réis,  foi por ti repudiado com a seguinte afirmação “Eu creio que o Sr. D. Pedro V é finamente delicado, e só dá esmolas a quem lhas pede. E quando, me a honra de me perguntar, na cadeia como eu me ocupava, respondi a S. M.: que trabalhava”.

Já havias pedido por três vezes para ocupar vagas que se deram para trabalhar na biblioteca e por três vezes o teu pedido foi recusado. A burguesia não te perdoava. Tu que estiveste entre a fina-flor dos escritores da tua época, muito sofreste. A mulher que tu verdadeiramente amaste, Ana Augusta, deu-te um filho - Jorge Castelo Branco - que cedo revelou sinais de loucura, como afirmas no teu livro “Nas trevas”, no seguinte poema:

Constantemente                                         
vejo o filho amado
Na minha escuridão, onde fulgura
A extática pupila da loucura,
Sinistra luz dum cérebro queimado.

Que posso eu dizer de ti, cujos olhos se humedeciam sempre que te lembravas desse teu filho ao olhar para a Acácia que o teu Jorge plantou.

A acácia do Jorge na Casa de Camilo Castelo Branco
Projectaste o teu termo à vida e a tua morte por suicídio resultou num funeral que partiu de Famalicão para o Porto, num vagão de mercadorias por caminho de ferro até Campanhã e daí foste para um jazigo no Cemitério da Lapa de um amigo teu, conforme havias pedido.
O funeral teve umas escassas dezenas de acompanhantes, tal como havia sucedido com João Almada (filho), que à frente da Câmara da Cidade, mandou  construir a Cadeia de Relação onde estiveste, com as pedras da muralha Fernandina (ainda hoje visitada por dezenas de turistas), as ruas em estilo recto de Santa Catarina, Camões, Cedofeita, Bonjardim, Alameda das Fontainhas e o Jardim da Cordoaria, entre tantas outras empreitadas… também este estadista que, como tu, tanto fez pela sociedade, teve um funeral de pouco mais do que se precisa para levar o caixão.

Tanto poderia dizer sobre o homem Camilo. Mas prefiro escrever sobre parte do muito e mais valioso que nos deixaste, porque é um privilégio falar do melhor que as pessoas nos legam. Outros factos, esses delego noutros mais entendidos do que eu.
Termino lembrando que, para fins de tua vida, foste agraciado com o título de Visconde de Famalicão, o qual só duas vezes utilizaste.

Foste proposto para o Panteão Nacional, porém, tal não veio a acontecer tamanhos foram os obstáculos apresentados pelo Parlamento. 

Como vês, até depois de morto eras perigoso...




07-06-2010 José Mendonça

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