sábado, 1 de junho de 2013

"Minha Aldeia, Antigamente…" da poetisa Maria Mamede

Tenho vindo a relatar parte de uma vida que não é só minha, mas de todos que por ela passaram, para se lembrarem que apesar de tudo, a vida de agora é mais suave do que aquela que aqui descrevo.

Deixo-vos com os versos de uma poetisa da minha terra que tão bem soube descrever S. Mamede de Infesta, aldeia que, a doze de Julho de dois mil e um foi elevada a cidade: ‘Minha Aldeia, Antigamente…’, de Maria Mamede:


Minha aldeia, antigamente
Laborioso cortiço
Era colmeia de gente
Mourejando, sol a sol;
E da aurora ao arrebol
Sorria, tranquilamente…

Tinha gente, tanta gente
Qu’ eu amei ou conheci
A minha aldeia era aqui
Mas hoje, tudo é diferente;
Já lá vai a mocidade,
Já passou a ser cidade,
Já esqueceu essa gente!

Por isso quero deixar
Antes que parta também
Aos que cá vivem agora,
A recordação de outrora,
Tempo para mim sem cuidado
E revivendo o passado
Dos que foram pró Além,
Quero trazer à memória
Alguns de que sei a história!

Tinha o “Crista” sapateiro
E o “Perigoso” barbeiro.
Perto, o “Barros” da Capela.
Tinha a tasca da “Malícia”
A “Benfolga” do polícia
E a “Laranja”, em Ventiela.

Tinha os “Senras” na carreira
A “Ti Maria Louceira”
E feira no Largo da Cruz,
Onde a “Olívia Hortaliceira”
De segunda a sexta-feira
Abria a boca e Ai Jesus!...

Festa igual não há nenhuma
Mesmo rondando quilómetros
Será procurar debalde;
Só o “Senhor da Boua Fertuna”
Ou a festa dos gasómetros
Lá no Largo de Moalde.

Na rua atrás da Capela
Existia um “Trovoada”
Casado com uma “Carneira”
Que passava a vida inteira
Sempre a trovejar por nada,
Mas caladinho p’ra ela…

Havia um “Olho de Vidro”
E havia um grupo entretido
A jogar a vermelhinha.
Havia um “Caramileiro”
E o “Manel Farrapeiro”,
Perto dessa Capelinha.
Quando havia um funeral,
Fosse de rico ou de pobre,
O “Quim Tarracha”, é sabido,
Compenetrado do acto,
Vestindo o seu melhor fato,
Ia à cruz, sem alarido.

E o “Manel Vai P’rá Guerra”
Que a guerra não conhecia
P’ra ganhar pataco
A fazer recados vivia.
Não dava p’ró que comia,
Ia dando p’ró tabaco!

Havia um “Cego” na Asprela
Perto do “Manel do Cabo”
Havia a gente do “Brinca”
E havia a “Vinte e Cinca”
Sempre num “arranca rabo”.

Tinha os filhos do “Cesila”
E a casa do “Basila”
Que era o “Quartel-General”;
Tinha uma “Lina Caruja”
E a família da “Maruja”,
Gente do Bem e do Mal…

Havia o “Manel d’ Além”…
“Caramalhas”, “Saias Rotas”
Gente descalça e de botas
Ou calçado rapelhado;
E a presa da Lavandeira,
Com o Rio Novo à beira
P’ra dar de beber ao gado…
Teve até um “Regedor”
O “Baristo Lavrador”,
Que sempre que alguém prendia,
Levava o preso consigo
E era tamanho o castigo
Que ser solto, ninguém queria!

Teve um Juiz “Julião”,
Um Professos “Fabião”
E um Padre “Farinhote”
Com a gata “Consciência”.
Teve a “Senhora Clemência”
Que arrastava o saiote…

A registar quem nascia,
Quem casava, quem morria
Havia uma “Primavera”.
E havia uma “Liberdade”
Sem saber o que isso era
E escondida a vontade
Dum Abril que foi espera!

Frente à “Loja do Cantinho”
Vivia o “Zeca Manquinho”
Que de “piela” dizia
Para a casa onde morava,
Sua “piscina” cruzava
A nado, quando chovia…

Pelos Passos, na procissão.
Havia um grande Sermão
Do “Encontro”, assim chamado
E “unhas”, que ninguém nos ouça.
Só o “Ribeiro da Bouça”
P’ró estandarte mais pesado.
Tinha um “Mestre Escola” pedreiro
Um “Periquito” barbeiro
Um padeiro “Batatinha”
Um lavrador “Cabeleira”
Tinha louças na “Barbeira”
E tabaco na “Cacinha”.

Tinha um “Silva Regedor”
E um “Cordeiro” doutor
Um lavrador “Fevereiro”.
Tinha “Poupas” e “Pardais”
E outros pássaros mais
Muitos, gentes de dinheiro.

Tinha um “Pereira” enfermeiro,
Um “Barros” relojoeiro
Casado c’ uma “Barista”
Tinha a casa “Tianol”
E o “Adelino Pitrol”
E tinha a bouça do “Brista”.

Havia um “Nocas” pintor
Que tinha um irmão actor
No Teatro de Revista;
E a “Gertrudes” parteira
E o “Nina da Sarradeira”
E um porqueiro “Batista”.

Tinha uma Fonte dos Alhos
E quem caísse em trabalhos
Na quelha da “Caganita”;
E o “Domingos” dos cavalos,
Foguetes de Quatro Estalos
E a família do “Pita”.
E um “Melro” na Igreja Velha
A caminho de Parada
Tinha a “Maria Picada”
E os “Fandinos” em passeio;
Tinha o “Infesta” jogando,
A “Maria Aurora” cantando
E o eléctrico ao meio.

O “Ginja” do Simpatia
Desenhava e escrevia
Tinha talento e humor
Quando entrou no “Caldo e Broa”
Chegou a ir a Lisboa
Na Companhia do “Flor”.

Tinha a “Farmácia do Lino”
Onde o “Quim” de pequenino
Era aprendiz de doutor.
Sabia dar injecções
Fazer pomadas, poções
E xaropes p’ró Amor…

E tinha o “Dr. Germano”
Parteiro como não há;
Mesmo não sendo de cá
Merece bem estar aqui
Pois ao que eu soube e vi
Ele trouxe para a vida
Muita gente cá da Aldeia.
Sendo a ingratidão uma coisa feia,
Recordo-o agradecida!


Do “Germano” seguidor
Pelo “Ginja” caricaturado,
Eu quero também lembrar
O “Dr. Vilar Machado”.
Baixo, bem apessoado
Que me apraz recordar.

O cauteleiro “Cabilhas”
Pôs os filhos e as filhas
A ajudá-lo no negócio
À esquina do Botequim
Fazia grande chinfrim,
Mas nunca quis nenhum sócio!

Tinha o “Augusto dos Panos”
Que já entrado nos anos
Fez um cinema na aldeia;
Tinha “Chapas” e “Moletes”
A “Pimenta” das bicicletes
E uma “Caritas” bem feia.

O cinema tinha o “Megre”
Bilheteiro e lanterninha;
Tinha uma “Viúva Alegre”
E o “Zoeira”, genro desta
Tocador de violino
Que escrever com muito tino
“S. Mamede Está In’ Festa!”

Ainda há hoje no “Flor”
O “Zé Oliveira” actor
Do tempo do “Caldo e Broa”.
Tanto tempo dirigente
Não é para toda a gente
Nem para qualquer “Patroa”…

A loja do “Campeão”
Tinha sementes, feijão
Hortaliças e etcs.;
Mas não tinha cola-tudo
P’ra colar “peixe-miúdo”
Nem as “bocas mais abertas”…

“Manuel Luís” e “Pacar”
Tinham carros para alugar
Com motoristas fardados;
Levavam ao mesmo tempo
Os noivos ao casamento
Pais, padrinhos e convidados…

Existiram no passado
Políticos contra o Estado
Democrático Movimento;
Hoje apenas o que resta
Em S. Mamede de Infesta
É essa Rua do Centro.

E havia “Cucos” e “Cucas”
E “Custódias” meio zucas
Que bebiam “escarlatina”;
Havia “Pedros” e “Pedras”
E “Lourinhas”, bem azedas
E “Polidores” em cada esquina.

À tasca do “Azeiteiro”
Ia um “Boletineiro”
Bebedolas, pachorrento
P’ra quem o correio urgente
Ou normal era indiferente…
“Se é urgente, tem tempo!...”

‘Inda há “Limas” e com lima,
Tanto primo e tanta prima
E ‘Inda há o “Leça Armador”;
Mas a “Isaura dos Caixões”
Já não entra em confusões
Porque abalou pró Senhor!

Havia muitos “Dourados”
E havia “Patos” casados
Com “Patas” e outras mais
P’ra juntarem a riqueza;
Havia a “Ti Ana Teresa”
E o “Zeca dos Jornais”.

A “Micas dos Caladinhos”
Vendia desses docinhos
Na sua loja de usados;
Paravam por lá uns “mangas”
Alguns amigos das “tangas”
E outros aposentados.
Numa noite de calor
Descansando do labor
Tentando matar a sede,
Criaram, deram à luz
O que foi seu “Ai Jesus”,
O rancho de S. Mamede!

Havia a “Foto Taveira”
E pertinho, quase à beira,
Havia o “Maximiano”
E o “Júlio Chapeleiro”
E os filhos do “Mineiro”
Com fominha todo o ano…

Mas não se julgue que eu penso
Serem tempos assombrosos
Pois descalcinhos, ranhosos,
Jogando à bola de trapos
Muitos meninos da Aldeia
Só tinham “jantar” ou “ceia”
Colchão de palha e farrapos.
Apenas sinto Saudades,
Desse tempo de esperança
Porque quando se é criança
Não se conhece maldade…

Muita gente que eu esqueci
E disso peço perdão
Talvez noutra ocasião
Eu os lembre noutros versos;
Às vezes são adversos
Os ventos da inspiração…

No entanto, à minha Terra
Deixo expresso este penhor
Expressão do meu Amor;
Que p’ra amar, não há idade;
E ao Padroeiro, a veia
Do que escrevo à minha Aldeia
Que agora é já Cidade!...

Quem quiser pode acompanhar outros trabalhos desta querida minha amiga nos seus blogues:


De Amor e de Terra

Se Não houvesse Fronteiras


XANGRILAH

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