terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Cartas ao amigo João: O homem dos sete instrumentos ...

Olá João.

Nesta quadra Natalícia onde a família se junta e se fala do amor pelo próximo, não deixa de ser penoso recordarmos aqueles que nos deixaram, e de ti claro, eu não poderia deixar de o fazer.
Aqui estou a lembrar-me da nossa infância, que foi sofrida, e bastante critica. Como tu afirmastes várias vezes: “andávamos com a barriga colada às costas”, agora observo o contrário, mas isso são outras coisas… Como sei quanto adoravas no Flor aquele movimento teatral que lá fervilhava, venho lembrar-te mais alguns excertos da peça que Serafim Lopes e sua equipa tanto polarizou naquela sala.

Lembras-te de uma figura típica que às sextas-feiras passava por S. Mamede a caminho da feira de Santana? O povo chamava-lhe o homem dos sete instrumentos, pois ele tinha dois pratos amarrados aos pés, um bombo, uma harmónica pendurada ao pescoço, mais uma gaita-de-beiços, pois, contaste bem: faltava um. Na peça há neste quadro um homem que era sempre aperreado pelos miúdos, pois nos diziam para perguntarmos a ele onde estava o sétimo instrumento.
Serafim Lopes, que explica onde está o sétimo instrumento com uma indiscrição do rei David, descreve este quadro com uma invulgar ironia, que nos faz sorrir, quando o homem aparece naquela esquina do centro de S. Mamede, onde todo o mundo parece que passava, e alguém lhe pergunta se então hoje ele não canta, e o homem dos sete instrumentos começa assim:

TOCA BOMBO, TOCA GAITA
TOCA GUISO E CASTANHOLA
REI DAVID TOCOU HARPA
LARGOU UMA FARPA
E PEGOU NA VIOLA

Outra personagem pergunta:
PISTO! OLHE, Ó TIOZINHO……         
DIGA-ME CÁ, ESTÁ BONZINHO?.......
DOU SATISFAÇÃO
Á PREGUNTA INJUSTA
 SE ESTOU OU NÃO
 É Á MINHA CUSTA
 E É ATREVIMENTO
 METER O NARIZ
 NO CONHECIMENTO
 DUM DESINFELIZ

EU DIGO-LHE JÁ
QUE A FEIRA É P”RA LI
É TÃO DAQUI LÁ
COMO DE LÁ AQUI
VÁ ATRÁS SEMPRE ANDAR
DO NARIZ QUE TEM
E QUANDO ELE PARAR
VOCÊ PARA TAMBÉM

TOCA BOMBO, TOCA GAITA
TOCA GUISO E CASTANHOLA
REI DAVID TOCOU HARPA
LARGOU UMA FARPA
E PEGOU NA VIOLA           Acabe lá ó tiozinho com a cantiga

DEMORO MUITO A GASTÁ-LO
O FRASEADO QUE VÊ
COMECEI EM CASA A CANTÁ-LO
E NÃO VOU ACABÁLO EM VOCÊ  vou consigo ó tiozinho mas para a feira
E A DAR-LHE –EU BEM LHE DIGO
QUE É BURRO, POIS É
NÃO QUERO IR CONSIGO
QUE EU VOU BEM A PÉ
QUEM FOR CAVALEIRO
É BOM ENCONTRÁ-LO
ENGORDE PRIMEIRO
QUE VÃO LÁ COMPRÁ-LO….

É DE CARRINHO QUE VENS
LÁ NA FEIRA NADA ESCAPA:
É BAZAR DOS “TRES VINTENS”
TEM TUDO NA LAPA
QUE LÁ TUDO TENS….
OURIVES TRAMOIAS
QUE TÊM MAIS VALORES
EM OIROS E JOIAS
QUE A RUA DAS FLORES
TEM PRATASE OIROS
 MAIS COISAS P”PRÓ ROL
 RELÓJIOS DE SOL
 CORRENTES PARA TOIROS
 CEVADOS….. TAMBÉM

E era assim que a crataiada seguia todas as sextas-feiras aquela típica figura do homem dos sete instrumentos, onde só se contavam seis, e se ia até Santana.
Assim Serafim Lopes e seus colaboradores nos mostravam um caso em que brincando com as palavras, se retratava a vida dessa gente que de doenças e fome estavam fartinhos

Como alguém disse um dia, que uma imagem vale mais que mil palavras, e como as que referi apenas subsistem em nossas memórias, termino mostrando-te que apesar de toda as (r)evoluções, tantos anos depois, o homem dos sete instrumentos não só não desapareceu como continua a tocar por esse mundo fora...





     Custóias 27 Dezembro 2013

     José Mendonça

sábado, 7 de dezembro de 2013

Carta ao amigos João -“Bodas de Prata“ do Grupo Dramático


HOMENAGEM

Amigo, aqui me tens novamente, a recordar as coisas boas a que assistimos na nossa terra e das quais ainda hoje restam raízes através da célebre peça teatral de autoria de Serafim Lopes, pela qual ficamos conhecidos como sendo os da terra do Caldo e Broa.
Hoje, caro João, apresento-te mais um caso que demonstra que esta peça nem sempre é sinónimo de brejeirice. Destaco, então, uma passagem em que duas personagens se encontram e travam o diálogo que se segue.   
Infelizmente, este S. Mamede, apesar de todas as saudades e desgostos, tem por força da nomenclatura, de estar sempre “ IN FESTA “

Nesse ano de então, houve as “Bodas de Prata“ do Grupo Dramático, que foi uma festa de arromba! O tesoureiro, depois das bodas de prata dos bombeiros, não falando nos bodos, que compreende a cada boda, e que foi uma festa para os pobres, depois, no campo de futebol, a Festa de despedida do Barbosa e do Regado, regada no final por lauto copo de água. Houve, ainda, as Festas do Menino, a comunhão, etc. etc.. Mas a mais significava de todas de todas foi, sem dúvida, a Festa de homenagem ao benemérito, sr. Francisco Marques Pinto! E o personagem que ao lado se encontrava comentou:
Tudo isso foi justo e lindo, mas junta-se o personagem planeta destruidor estão bonzinhos... vou melhor! Graças ao Quim da Farmácia! Mas nesta maneira de ser muito nossa de ver as coisas, porque não se pensou ainda, homenagear a memória de um mamedense ilustre, que legou parte da sua fortuna ás criancinhas das escolas? Porque se tem esquecido esse Homem que se chamou Manuel António Santos Dias...?!
Era lição de justiça e gratidão, e tenho certeza que toda a gente, o povo humilde pelo menos, responderia à chamada, sinceramente, de coração nas mãos. E voltando-se para o público, diz assim:

Ó povo desta terra
O sentimento em pé
Responde em Alta Voz
SALVÉ

E se isto não bastasse, a sensibilidade do autor tornar-se-ia inquestionável atentos os versos que se seguem:

  S. Mamede está “IN” FESTA
    
Está S. Mamede em festa e sua gente
Na serena honradez do labutar…
Passa a vida a sorrir e a cantar
Põe S. Mamede “In” Festa, eternamente

Não há torrão ao sol que mais encante
E as belezas sem par que tu encerras
Hão- de encontrar poeta que as conte….
E o povo te alevante
À mais linda das terras…

S. Mamede de Infesta
Oh terra do nosso ideal
Alguém ilustre - já morto  –
Te chamou “Sintra do Porto”
- jardim de Portugal
        

Custóias, 29 Novembro de 2013           


José Mendonça

sábado, 9 de novembro de 2013

Cartas ao amigo João - Nunca pode haver miséria enquanto houver “CALDO E BROA”

Inauguração da linha do electrico em 1910 no cruzamento de São Mamede de Infesta


Amigo que és e continuarás a ser, estejas onde estiveres, concede-me a graça de comigo recordar aquilo que vivemos e vimos representado na peça S. MAMEDE ESTÁ IN’ FESTA. Apreciemos e desfrutemos do trabalho do autor da revista, que tantas alegrias nos deu. Homem sensível à vida do povo, Serafim Lopes descreve um quadro soberbo do que era o sofrimento desse povo, do qual ele próprio fazia parte.

Naquele cruzamento da Rua Godinho de Faria com a Avenida do Conde, onde se avista a Igreja de S. Mamede, a vida era intensa. Ali havia sujeitos apelidados de ‘polidores de esquinas’ que passavam o dia com seus ofícios, os dois vendedores de jornais e cautelas e ainda o engraxador. Juntos, além das tarefas para as quais estavam talhados, também dirigiam o trânsito. A propósito, é da mais elementar justiça que se reconheça que, graças a essas pessoas, inúmeros desastres se evitaram naquele local.
Entretanto a peça fica enriquecida com uma nova personagem, a de um rapaz com o ofício de construção civil, com uma marmita numa mão, de onde tirou uma malga de caldo fumegante e um pedaço de broa. À provocação de um dos presentes - “Vão duas sardinhitas?” – respondeu o rapaz: “Ai as sardinhas tomara-as eu para mim, despediram-se por essa barra fora, a sardinha agora manda ventarolas... julga-se pescada e é pescada… à rede.” Caldo e broa...! E Deus, o dê sempre...

NUMA CASA HUMIDE E SÉRIA
ONDE MORE GENTE BOA
NUNCA PODE HAVER MISÉRIA
ENQUANTO HOUVER “CALDO E BROA”
PÃO DE MILHO LÁ SE COME
CALDO DE COUVES DA HORTA
PODE LÁ PASSAR A FOME
QUE NUNCA LHE BATE À PORTA

O CALDO E BROA
DEUS O ABENÇOA
NOS NOSSOS LARES
É UMA ALEGRIA
SE EM CADA DIA
NÃO FALTARES.
HÁ UMA CANÇÃO
QUASE ORAÇÃO
QUE O POVO ENTOA…
DEUS MATA A FOME À POBREZA
PONDO À MESA
CALDO E BROA.

CHEGA QUASE A SER RIQUEZA
VER NO LAR DE QUEM TRABALHA
CALDINHO E BROA NA MESA
QUANDO OUTRA LÁ FALHA
E O POBRE DIA
SUA VIDA ASSIM RESUME
TER NO PEITO UMA ALEGRIA
PÃO NA MESA E CALDO AO LUME
              
EM CASA POBRE HONRADA
FICA BEM E NÃO DESTOA
P’ RA MANTER A FILHARADA
PÔR À MESA CALDO E BROA
E SE UM DIA CASA UM FILHO
DIZ-LHE A MÃE… Ó FILHO, OUVES?
TENHAS SEMPRE PÃO DE MILHO
E UM CALDINHO DE COUVES

    
Uma vez mais se vê que a forma encontrada por Serafim Lopes para descrever a árdua vida da classe social então existente fez dele um fotógrafo, com a objectiva focada na eternidade, não te parece?

Custóias 07 de Novembro de 2013

José Mendonça

domingo, 3 de novembro de 2013

Cartas ao meu amigo João: "TANTO CALO, CALO, CALO"



Como estás vendo João, não me esqueci e mais uma vez vamos desfrutar e saborear a peça teatral de S. Mamede está In'Festa que Serafim Lopes nos proporcionou em 1943 e que tanto nos maravilha ainda hoje. Vermos como o autor se debruçou sob figuras típicas que vindo dos lados da Maia, iam para o Porto vender alhos com o seu pregão castiço e assim percorriam largos quilómetros, as raparigas que pregoavam assim:

VOU AO PORTO VENDER ALHOS
A CANTAR TÃO SATISFEITA
E QUEM VAI PARA OS SEUS TRABALHOS
QUERE-ME BEM E ME RESPEITA

MAS HÃ “UM “ QUE MAL M'AVISTA
GAROTO E DESCARADÃO
VEM ATRÁS, TODO TROCISTA
P’RA OUVIR O MEU PREGÃO

QUER?...  AI, MINHA SENHORA
QUE ESTE QUE ESTE PREGÃO TÃO MAL SOA
AOS OUVIDOS DA PESSOA
QUER? AI QUE EU VOU-ME EMBORA
SE NÃO QUIZER QUE LHE MANDE
ESTES DE CABEÇA GRANDE
E SE EU VIR QUE NÃO ARRANJO
A VENDE-LOS AO PORTÃO

OU VOU P”RA PORTA DO ANJO
OU P”RA PORTA DO BOLHÃO
É TAL FARTURA NOS MERCADOS
CAUSA INVEJA E ÁS VEZES RALHOS
QUE AS CACHOPAS DESTES LADOS
TE~M UMA FONTE DOS ALHOS.

SE HÁ ALGUÉM QUE NEGUE AO ALHO
TANTAS VIRTUDES QUE TEM
PRECISA DE UM BOM VERGALHO
POIS NÃO CONHECE BEM
VÓS DEVEIS—LHE UM “ PADRE NOSSO”
RAPAZES E RAPARIGAS
QUE OS TROUXESTEIS NO PESCOÇO
PARA AFUNGENTAR AS LOMBRIGAS.


Como vês, não podemos deixar de admirar o trabalho de qualidade de Serafim Lopes e dos seus colaboradores da época. Se existir alguém (nem que seja uma única pessoa) que se sinta bem pelo em escutar estas minhas lembranças dum caso que todo o País se admirou, já me sinto satisfeito. O autor era um observador dos costumes da terra que tanto amava, senão vejamos: quando nos escreve da vida daqueles que têm tantas dificuldades neste texto, em uma ocasião de grande falta de trabalho, vem-nos recordar o quanto é difícil a vida em casa dum desempregado, como podemos constatar nesta parte do texto em que com desespero o Zé Povinho confessa a sua mágoa:

TANTO CALO, CALO, CALO
E EU NÃO PARA P’RA PAGAR
TANTO CALO, CALO, CALO
QUE O CREDOR TEM QUE FALAR
DIGO: PAGO, PAGO, PAGO,
LÁ P’RO ANO, P’RA DEZEMBRO….
DIGO: PAGO, PAGO, PAGO
CHEGO LÁ; AI? NÃO ME LEMBRO!...

QUEM TIVER A SOGRA ÁS COSTAS
E MAIS A MULHER AO LOMBO

Á MULHER, COMO EM POSTAS
E DA SOGRA FAÇO UM BOMBO

NÃO TARDO A MORRER
QUE É TUDO QUE A GENTE LOGRA….

QUEM TEM SOGRA, QUE TEM LINGUA
É COMER LÍNGUA DA SOGRA ….

QUE GRANDE AZAR!
VIVO QUASE NA MISÉRIA
POIS VOU-LHES AQUI CONTAR
P‘RA A MINHA FÉRIA:

SÃO 10 POR CENTO P’RÁS CEBOLAS E FEIJÃO….
15 POR CENTO, ORA BOLAS! P’RO CARVÃO….
P’RO BACALHAU, 20 POR CENTO E CHEIRA MAL...
E AINDA MAIS UNS 2 POR CENTO PARA O SAL….

ONDE É QUE SE HÁ-DE ARRANJAR
COM QUE ENTREMOS O BUCHO
SE TODO O PRATO É DE LUXO
E EU NÃO GANHO P’RA O PAGAR

P’RA SAÍR DE TAIS SARILHOS
VOU-LHE LEMBRAR UM RECURSO
PÕR SOGRA, MULHER E FILHOS
A COMER COMIDA D’ URSO

QUE GRANDE ‘AZEMBRA’
SE NÃO GANHA MASSA A RODO
ORA VEJA SE SE LEMBRA
QUE LHE LEVA O PINGO TODO


Mas Serafim Lopes era sensível às preocupações que o rodeavam na sociedade. Aqui está um exemplo do valor que dava aos bombeiros pelo seu voluntariado:


FADO DO BOMBEIRO


VOLUNTÁRIOS DESTA TERRA
DE ATITUDE NOBRE E FRANCA
DE PORTE HEROICO E AUDAZ
QUE NÃO SÃO HERÓIS DA GUERRA
SEU SIMBOLO É A BANDEIRA BRANCA
SÃO OS SOLDADOS DA PAZ…

SE PASSA UM PRONTO-SOCORRO
EMBORA FEIO E SEM BRILHO
NÃO SORRIAS COM DESDÉM
PODE IR LEVAR SOCORRO
A TUA ESPOSA, A TEU FILHO
A TEU PAI OU TUA MÃE…

QUANDO A SIRÉNE
A CHAMAR NÓS , NUM GRITO
JÁ NOS LEMBRA ALGUÉM AFLITO
QUE É PRECISO SOCORRER
E SÓ A IDEIA
DO DEVER, LEVA O BOMBEIRO
A ARRISCAR –SE NO BRASEIRO
SALVAR-LHE A VIDA…OU MORRER

TUDO DEIXA: A MÃE QUERIDA…
OU A ESPOSA IDOLATRADA
QUE AJOELHAM NUMA PRECE…
VAI ARRISCAR A VIDA
POR ALGUÉM QUE NÃO LHE É NADA
E QUE ÁS VEZES NEM CONHECE

SE OUVE ALGUÉM SOLTANDO AIS,
PARA O PERIGO VAI SEM MEDO
SUA DOR TAMBÉM LHE DOI -
QUANTA VEZ NÃO VOLTA MAIS
E A CHAMA GUARDA SEGREDO
DE VER MORRER UM HEROI…


Como vês João, neste fado Serafim Lopes dá-nos a visão dos perigos em que os soldados da paz se empenham na salvação do seu semelhante, quem o cantava era dono de uma voz que chegava a comover, tamanha era a paixão que o fado transmitia.

José Mendonça


Custóias 1 de Novembro de 2013

sábado, 26 de outubro de 2013

Cartas ao meu amigo João: A nobreza do fato de macaco.

Na continuação da minha carta em que te falava da revista de Serafim Lopes sobre os costumes de nossa terra, eis-me aqui a dar a continuação da descrição daquela peça de teatro que fascinou o publico em 1943. O forasteiro que antes tinha vindo passear em alguns lugares de S. Mamede de Infesta volta à cena com a sua critica e aparece no cruzamento da avenida, virando-se para o engraxador, trava o seguinte diálogo:

… OLÁ! JÁ CÁ ESTOU OUTRA VEZ:
DESCULPEM ESTE MEU JEITO,
MAS CREIAM VOSSAS MERCECES
QUE EU LEVO MUITO A PEITO
TUDU QUANTO VAMOS VER,
TUDU QUANTO AQUI SE PASSA
OS QUE QUEREM PARECER
TUDO AQUILO QUE NÃO SÃO.
QUEM TEM, QUEM DEIXA DE TER
OS QUE PODEM E OS QUE NÃO…
QUEM QUEIRA TRABALHAR
E OS QUE NÃO QUEREM PAGAR
MAS SEMPRE TEM DE COMER….
E HÁ AINDA O CORRE-CORRE
DOS QUE NÃO PODEM PARAR
E ENQUANTO A VIDA NÃO MORRE
MATAM-SE A TRABALHAR

Como vês João, Serafim Lopes em 1943 tinha uma maneira de observar a vida que nos faz pensar nos tempos actuais. Este homem tinha uma visão futura, mas é mais ao abordar a forma como se desprestigia certas artes que ele nos confidencia estas opiniões:

SEI MUITO BEM QUE A TUA CRUELDADE
NÃO VEM, COMO A DE ALGUNS, DA MALVADEZ
MAS VEM DESSE DESEJO E RUIM VAIDADE
QUE FILHO DO POVO ÉS – NÃO TE FAZ ASPIRAR A SER “BURGUÊS”
FILHO DO POVO ÉS – NÃO É VERDADE?
POR DESPREZO DIRÁS QUE NÃO, TALVEZ…
MAS SE TAL DIZES, MOSTRAS TER MALDADE
E MOSTRA QUE TENS VISTA, MAS NÃO VÊS

FATO DE GANGA É NOBREZA
QUE AO CORPO SE AJUSTA E TALHA
E LHE DÁ VIDA E BELEZA
E A NOBRE DE CERTEZA:
É DE QUEM TRABALHA


Como vês, Serafim Lopes tinha uma maneira de pensar, actualizada e com o seu peculiar tentava mostrar que a lado nenhum se chega sem trabalhar…


José Mendonça
25 de Outubro de 2013

sábado, 12 de outubro de 2013

Cartas ao meu amigo João: O coro das leiteiras


Amigo João:

Tendo, uma vez mais, a nossa passagem pelo Flor na memória, reforço o quanto a nossa juventude amava aquele lugar, que nos juntava aos adultos a ver os ensaios de teatro. E era salutar os mais velhos ouvirem os mais novos e, sorrindo, diziam que éramos um ar fresco que rompia para aqueles lados, dividindo-nos em sonhadores ou realistas.
Voltando ao tema da carta anterior, tentemos lembrar as cenas - ou parte delas - que Serafim Lopes retratou, aqui e ali com um toque de humor, mas sem nunca retirar o carácter verdadeiro de uma vida dolorosa. É disso exemplo a passagem alusiva às leiteiras, retratada através destes versos.

DOU LEITE TODOS OS DIAS
SEM VONTADE, QUANTAS VEZES…
CORRENDO RUAS E ATALHOS
MAS NÃO USO PORCARIAS
USO P’RA PARA BEM DOS FREGUESES
ÁGUA DA FONTE DOS ALHOS.
              
E TÃO BEM COMPOSTO FICA
QUE ATÉ O DOU SEM ENGANO
AO MEU “OME” E AOS PARENTES
PORQUE É A ÁGUA DESSA BICA
QUE O SENHOR DOUTOR GERMANO
ACONSELHA AOS SEUS DOENTES.
                  
AI AS LEITEIRAS
CADA QUAL COM SEU PECADO
PELAS RUAS E VIELAS
A DAR AO CANADO,
SÃO BEM ARTEIRAS
MAS ALGUMAS SÃO TÃO BELAS
QUE MAIS VALE O LEITE DELAS
QUE O LEITE “PASTEURIZADO”.

Outros versos mostram como Serafim Lopes retratava situações, brincando com as palavras:

MAL S. MAMEDE AMANHECE
PRINCIPIA A DURA LIDA
PORQUE O POVO RECONHECE
QUE O TRABALHO ENOBRECE
TODA A NOSSA VIDA.

Como vês, já nessa época Serafim Lopes nos surpreendia na forma como respeitava o labor de um povo na sua luta pela vida. Mas há mais:

DESPERTA: É MADRUGADA
Ó POVO DESTA TERRA;
COMEÇA A ACTIVIDADE
QUE O DESPERTAR ENCERRA
UM TOQUE DE ALVORADA
A UNIR-TE NA ANSIEDADE
SACODE OS MEMBROS LASSOS
DO VIGOR QUE NUNCA FALHO
QUE ESSA FADIGA ENCOBRE,
SE VIVES DO TRABALHO,
VAI-LHE EMPRESTAR OS BRAÇOS…
PORQUE O TRABALHO É NOBRE:

REFRÃO

ALERTA:
LABORIOSO POVO.
DESPERTA!
LEVANTA-TE DE NOVO.
ESCUTA…
JÁ CANTA O GALO AO LONGE
COMO O SINO DE MONGE
A CHAMAR-TE À LABUTA
NA VIDA VAI VERGAR O TEU DORSO
A VIDA PRECISA DO TEU ESFORÇO
É NOBRE QUALQUER PÁ, QUALQUER MALHO,
A RIQUEZA DO POBRE,
É SAÚDE É TRABALHO…

Recorrendo à brejeirice e brincando com as palavras, em 1943/44 o autor da peça mostrava uma realidade que não se podia esconder.


Custóias 2013-10-10

José Mendonça

sábado, 28 de setembro de 2013

Cartas ao meu amigo João: S. Mamede está In'Festa


É assim que encontro a nossa Aldeia, onde eu e tu nascemos e aprendemos a viver.

Mas voltemos àquele cruzamento que começava a ter vida a partir das 6 horas da manhã. O forasteiro relata-nos na sua maneira brejeira uma vida que começa pelo alvorecer da aurora. Fala-nos da sua vida saudável de campista, pois tem tenda para se abrigar, não paga renda, tem um cão que só come palha, porque é mais barata do que a gasolina, e ainda guarda o dono.

O movimento no cruzamento aumenta ao som da sirene dos bombeiros que toca a alvorada e do relógio da igreja que toca as 7 horas. As leiteiras e lavadeiras tomam os seus caminhos em direcção, na sua maioria, ao Porto. No cruzamento ficam os ardinas e engraxador que além da sua actividade, fazem de sinaleiros (muitos e muitos desastres naquele lugar evitaram). Às 7h45 tocam as fábricas e de cinco em cinco minutos voltam a tocar. A última vez que tocam, às 08h00, marcam o desacelerar do formigueiro das pessoas que correm para seus trabalhos para trabalharem oito horas, seis dias por semana.

Entretanto, João, voltou a aparecer O Campista, perguntando se havia alguém que se oferecesse para mostrar alguns lugares da nossa terra. Foi então que um dos presentes se ofereceu para o fazer. Partindo do Lugar da Amieira, na Quinta da do Calem, começou o local por dizer:
    
MISSIURES E MISSIURAS
OLHAI QUE BELEZA ESTA! …
POR ENTRE AS TREVAS DESTE CLARO DIA
VÊ-SE TODA A FREGUESIA
DE S. MAMEDE DE INFESTA.
DAQUI TUDO SE AVISTA:
A AVENIDA DO CONDE
PICOUTOS, QUE SE ESCONDE,
E A CASITA DO CRISTA…
AGORA MEUS SENHORES “ BOIS”
E MINHAS SENHORAS “BOIAS “
ARREPEAI AOS “ DESPOIS “
NAS AVENIDAS….QUE JÓIAS!
SE AS HÁ MAIS LINDAS, NÃO ACHO,
COMO O SOL, QUE AS ALUMINA
E O LAMPIÃO DA ESQUINA
A ALUMIAR CÁ P’RA BAIXO.
O IMPULSO QUE A TERRA DEU
O MAJESTOSO COLISEU
QUE SE VÊ DAQUI… O SÍTIO…
AS ESCOLAS, DESTE LADO,
NO MESMO LADO, O EDIFÍCIO
REPAREM NAQUELE ESTADO
 QUE É UM ESTADO…. INTERESSANTE
HÁ-DE SER REEDIFICADO
MAS TEM DE CAIR PRIMEIRO.
É QUE UMA ESPERANÇA SE ESCONDE …
ESTÁ-SE À ESPERA QUE SE VEJA
EM MANHÃ DE NEVOEIRO,
APARECER OUTRO VISCONDE
COMO O QUE DEU COM ESTA IGREJA…
O RECREIO… AS CRIANÇAS A BULIR…
A CORRER E A DAR GRITOS
JÁ CHEGARAM A AFLIGIR
O SENHOR DOS AFLITOS.
VEJAM OS JARDINS….QUE OMA
DE CRAVOS E VIOLETAS
QUE CRESCEM ESPALHANDO AROMA
PELAS VIELAS E VALETAS…
NO MEIO, ESTÁTUAS P’RA HISTÓRIA
EM BRONZE, EM MÁRMORE E LOUSA
UMA DELAS PARA MEMÓRIA
DO MAJOR RAMIRES DE SOUSA…
AGORA VÊ-SE AO VOLTAR   
PARADA E CUSTA A CRER…
COM O RIO LEÇA A CORRER
E A FÁBRICA DO “LAGE” A ANDAR,
VÊ-SE POUCO, QUASE NADA.
MAS É POR VIA DO SOL
E POR CAUSA DA BANCADA DO CAMPO DO CAMPO DE FUTEBOL
IGREJA VELHA - TÃO  TRISTE -
TÃO VELHA QUE EU NUNCA A VI
POIS A ÚNICA QUE EXISTE
É AQUI.
É AQUI? DISSE O CICERONE
MOALDE, BOA FORTUNA
ONDE O POVO, TODO UFANO.
P’RÁ QUE A GENTE SE
FAZ UMA RIFA POR ANO…
MAIS P’RA FRENTE VÊ-SE A “BARREIRA
S. MAMEDE FICA AQUÉM,
E DALI À SERRADEIRA
E A TERRA DE NINGUÉM
DEPOIS TEMOS O TELHEIRO
QUE TEM MAIS FAMA QUE ALFAMA
P’LOS FADISTAS DE FAMA
E O SANTO CASAMENTEIRO
E A PONTE NOVA? QUE BELEZA  
QUE A NOSSA TERRA ENRIQUECE…
VISTA DE LONGE, PARECE
UMA HERÓICA FORTALEZA,
DE IMPONENTE ARQUITECTURA,
QUE TEVE COMO MODELO
A ELEGANTE CURVATURA
- QUE HÁ NO LOMBO DE UM CAMELO…
O COMBÓIO DE CINTURA?!
QUANDO AS ÁGUAS NÃO ESTÃO TURVAS
LEVA AO BANHO AS CRIATURAS
PELA MÃO MESMO NAS CURVAS,
FAZ MAIS DE 30 VIAGENS,
E TÊM TANTAS CARRUAGENS
QUE O COMBÓIO SEMPRE A ANDAR
LEVA UMA HORA A PASSAR…...
A ESTAÇÃO É…” PRIMAVERA “
DE INVERNO NÃO TEM NINGUÉM
É ALI, QUE A GENTE ESPERA
E SÓ QUANDO O COMBÓIO CHEGA
SE SABE À HORA QUE VEM.
HÁ QUEM VÁ COM CALOR,
LÁ P’RA CIMA… MAS EU ACHO
QUE É MELHOR MUITO MELHOR
IR DA CINTURA P’ RA BAIXO.
ONZE E MEIA! CAVALHEIROS,
NESTE RELÓGIO - UM PORTENTO
C’ ELEGANTES PONTEIROS
QUE SÃO MOVIDOS PELO VENTO
E PELA BRISA DA MANHÃ…
SE QUEREIS AQUI ESPERAR
AO MEIO-DIA OUVIREIS DAR
AS DEZ HORAS DA MANHÃ...
POR ISSO, SEM MAIS ALARDE
VAMOS EMBORA QUE É TARDE…
DAQUI VIRAM O ESPLENDOR
QUE A GENTE VINDOURA HERDA…
MAS QUEREM VER MELHOR…
VÃO À… AMÉRICA
      
          
Por aqui vês até que ponto Serafim Lopes brincava com as palavras. E com ironia criticava, ao seu jeito brejeiro, como tantas vezes nos dizia. Se nos debruçarmos sobre o conteúdo desta peça, damos connosco a pensar como a censura deixou passar esta revista, na qual – em 1943/44 - o autor consegue mostrar o viver dessa época.

Brincando com as suas brejeirices e com belas canções, a obra do mestre percorreu o País todo, levando o povo a conhecer-nos pela terra do CALDO E BROA, esquecendo-se que somos Mamedenses.
    
Adeus, Amigo. Estejas onde estiveres, dá-me o prazer de te lembrar a aldeia onde nascemos.

        

Custóias, 27 de Setembro de 2013  

José Mendonça


sábado, 14 de setembro de 2013

Cartas ao meu amigo João: O nosso Flor


Amigo, há quanto tempo não te dou notícias... mas sabes, certamente que a nossa Aldeia de agora já nada te diz.
Há dias deparei-me defronte ao Flor, que agora está todo chique. Nem por sombras fazes uma ideia de como está transformado. Não se vislumbra um único traço daquela casa de Teatro que conhecíamos, onde ao Domingo havia baile; onde as senhoras e meninas tinham assento em cadeiras, aguardando que os cavalheiros as convidassem para dançar; onde um senhor ao centro da sala observava tudo em seu redor e garantia o respeito e o cumprimento das regras; onde, de tempos a tempos, a dama podia convidar o cavalheiro com quem queria dançar.
Ainda me recordo de, num certo domingo, teres ido ao sapateiro buscar o teu único par de sapatos que lá tinhas levado para consertar. O sapateiro ainda não tinha pegado neles e tu, para não faltares ao baile, foste com um pé calçado e o outro enfiado num chinelo, alegando uma lesão no pé... Ai João, em que trapalhadas te metias!
Pois agora o FLOR - onde aprendemos que a frase Sai de cena quem não é de cena, que as pancadas de Moliére nasceram das peças que  este dirigia com mestria e que era sob a forma de um palavrão que se desejava um bom trabalho ao artista que ia entrar em palco - de teatro tem pouco. É hoje uma invulgar sala de espectáculos, mas o teatro não é seu pilar.
Quantas peças e quantos realizadores lá conhecemos não menciono nenhum porque eles são tantos, que de certeza me esqueceria de alguém. Excepção feita a Serafim Lopes, um simples operário da Companhia Carris do Porto que, como bem te recordas, nas décadas de 1940 a 1950, deu fama à nossa terra, S. Mamede de Infesta, com a revista S. MAMEDE ESTÁ IN’ FESTA.
A peça chegou a andar por todo o País, enchendo as maiores casas de espectáculos. Esgotou por duas vezes nos Coliseus do Porto e de Lisboa. Até nos chamavam ‘Os da Terra do Caldo e Broa’, recordas-te?
E é também com saudade, caro João, que recordo o cruzamento da Rua Godinho Faria com a Avenida do Conde, afinal o ponto de partida do quotidiano mamedense, tão bem representado na peça. Nem as árvores centenárias que nos acompanhavam da igreja ao cruzamento ensombravam as seis badaladas com que os sinos acordavam a nossa gente para mais um dia.
Por essa hora que ditava o raiar precoce de mais um dia já as leiteiras e as lavadeiras levavam as suas labutas. Algumas, até, discutiam como acrescentavam o leite. Neste entretanto iam chegando os homens que vinham do Porto com sacos repletos de jornais. Certamente concordarás comigo, João, se destes homens destacar o maneta, junto à esquina do Talho do Quelhas Lima, que, juntamente com outro ardina cujo nome não me lembro, vendiam cautelas e jornais, e o engraxador, o Zé da Chica.

É este cenário que de realidade se torna ficção e que nos apresenta um personagem que, ao chegar àquele lugar a fervilhar de movimento, com um cãozinho puxando um pequeno carro com palha e uma tenda de campismo, se surpreende com semelhante azáfama:

"Ah! Boa noite!
Eu estou aqui por engano
Saibam Vossas Excelências…
- 43 é o ano
Em que esta função se passa
Mas não tendo idade a graça,
E por mor das aparências,
Eu vou fizer a vossências
Tudo quanto se passou,
Pois vamos, (e eu também vou)
Contar à nossa maneira
Mais moderna, mais brejeira,
Mais ao gosto de hoje em dia,
Que qualquer Manel e Maria
Dos tempos que já lá vão,
São hoje iguais, pois então,
(Co’ a devida diferença),
Na linguagem, que na crença
Tudo continua igual;
Mesmo com vida diferente,
Toda a gente é sempre gente
No bem, tal como no mal.
Hoje já não há leiteiras
Mas naquele tempo havia:
- A Ti Lucinda, a Maria
E a Laura, a do “Enfeite”
Fazendo crescer o leite…
Tudo era diferente, então…
Mas hoje, os que aqui estão
Vêm só p’ra vos lembrar
O que se fazia outrora;
E agora, vou-me embora
Que o engano já vai longo
E até já falei por dois,
Se calhar, já disse asneiras…
Já vêm aí as leiteiras!...
Adeuzinho! Até depois!..."

Nada é como era, a não ser nas minhas memórias e nessas, a nossa Aldeia continua a ser encantadora.


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