sábado, 23 de março de 2013

A Dama Mistério que nos anos 40 foi viver para a rua onde eu morava


Pelos meus 7 ou 8 anos de idade, foi viver para a rua, onde nasci e morei até aos 25 anos, uma senhora que, pela sua maneira de estar, se distinguia dos demais residentes daquele lugar, então o povo titulou-a a mulher mistério, talvez por ter uma maneira peculiar de vestir, vivia sozinha, exilava-se daquela gente modesta, na maioria, vivendo de profissões como, vendedeiras de pão, como minha mãe, e empregados de construção, padeiros, como meu pai, enfim uma rua onde de tempos a tempos se atravessa-se um carro no nosso campo de futebol que era a rua, com 2 pedras a sinalizar as balizas, nossas chuteiras eram os nossos dedos dos pés que ao fim de certo desgaste acabavam por partirem-se ou ficar torcidos, e também éramos peritos em partir os vidros das portas e janelas, embora lá tivéssemos alguns CRISTIANOS, mas eram mais tortos, do que o nosso ídolo de agora.

Mas voltando à nossa dama que era uma figura ímpar, usando óculos escuros só 2 ou3 pessoas é que saberiam o nome dela, se é que saberiam, pois o verdadeiro acho que o não sabia, vivia só, e a minha mãe que lhe servia o pão certa vez pediu-lhe, se em vez de atirar ao lixo jornal do dia anterior, se o dava para o meu pai o ler, aceite o pedido, passei a ir busca-lo, ao dia seguinte ao da sua publicação, e não é que certo dia, quando eu vou buscar o jornal, não sei se talvez, como eu andasse na escola perguntou-me se eu queria que ela me emprestasse um livro para ler. Claro era o meu sonho, ainda para mais vindo de uma senhora de classe diferente daquela que me rodeava, mas, diz-me ela, com a condição que depois de o ter lido o descrever, e se a ela agradasse e visse que eu o lhe narrava, estava dentro do contexto do me tinha emprestado, teria livros daí em diante. E mais, convidou-me a entrar em sua casa, mostrou-me uma divisão do prédio ao, talvez a divisão mais opulenta daquela casa, e então dou em mim completamente assombrado com estava vendo as paredes repletas de livros da casa, a mais opulenta daquela pequena rua onde eu morava, e, chegando-se a uma estante, tirou um livro e fitando-me, me exclamou: “Primeiro nunca te iludas pelo belo aspecto da capa de um livro mas sim pelo seu conteúdo. Segundo lê como estejas a ver um filme e verás que há escritores a descreverem certos lugares como se nós estivéssemos a percorre-los.”
Então pegou num livro e entregou-mo, o romance “Os meus amores” de TRINDADE COELHO (isto pela volta de 1940).
Ainda hoje tenho esse livro, já velhinho, mas guardo-o religiosamente, oferta dessa dama misteriosa, e então quando o foi entregar já depois de o ter lido, apressadamente e o entreguei e o descrevi. Esperei que o e exame lhe agradasse para que a promessa fosse cumprida quando, depois de lho entregar para surpresa minha, ela me diz que para princípio não está mal, e como prémio, “aqui tens o livro que te ofereço com imenso gosto”.
Assim começou a primeira de muitas leituras de livros, sendo ponto assente que tinha de os descrever, este acto e as saudades dessa senhora, de cuja elevada cultura me fui apercebendo.

No fim da Segunda Guerra Mundial, naquele famoso dia em que o povo festejava através da rádio e do tocar dos sinos, ela desafiou-me para irmos para a rua para a festa que lá se fazia, caso único e enorme que felizmente jamais vi. “Então me disseste com as lágrimas nos olhos, que eras sozinha, e então afirmei-te que teria de pedir ao meu pai, se caso o podia fazer, ir contigo não é que ele deu-me o consentimento, não deixando de me avisar que tencionava em breve, falar contigo sobre as minhas idas a tua casa, pois tinha tido conhecimento de certas visitas nocturnas que te faziam. Contei-te o caso e vi-te com lágrimas nos olhos. Já não querias sair, mas depois de tanto incutir, lá fomos com o povo e com a alegria, pensando que logo no seguinte dia, a fome, a tuberculose e tudo que de mal existia naquela altura acabariam como que por milagre. Afinal, ainda demorou anos a deixarmos de pôr rebuçados ao almoço, para, o adoçar.

Mas, voltando ao assunto, a minha dama misteriosa, ao contar-lhe o que meu pai te disse, quando tu própria, foste falar com ele e eu ao perguntar-te o que lhe disseste para, assim com tanta facilidade, ele mudar de ideias, me disseste que enquanto eu estava à tua beira, não partia os vidros das tuas janelas a jogar a bola defronte a tua casa.

Quantas vezes me lembro das tardes em que, juntos, merendava-mos e me dizias que a faca era na mão direita, e a esquerda servia para o talher, e eu, muito sério, perguntava à mão direita “importas-te de ficar com o garfo?” Então via-te sorrir, via esse olhar de alguém a quem tiraram alguma coisa de muito sagrado, e logo rolavam pelo teu rosto duas lágrimas. E quanto me custava ver-te assim. Muitas vezes pensei ser eu causa dessa tristeza.
E assim fui crescendo, agora já lendo, à tua frente, livros de Camilo, Eça de Queiroz Júlio Diniz, Arnaldo Gama, Campos Júnior e, como não podia deixar de ser, Trindade Coelho. E de todos tinhas um apontamento a dar em relação à forma como escreviam e à sua obra.

Falaste-me do melhor escultor que tínhamos, Soares dos Reis, a quem os melhores escultores do mundo deram o prémio de melhor obra ao Desterrado. Contaste ainda que, invejando tal galardão, alguns duvidaram que tal obra fosse dele, catalogando-a de PLÁGIO, quando todo o Mundo se deleitava com as suas maravilhosas obras. A palavra plágio, injustamente atribuída à sua obra, levou a que o escultor, o maior que tivemos com prémios internacionais, se tivesse suicidado.

E assim a amizade crescia proporcionalmente aos teus ensinamentos. E nunca para aquele povo deixavas de ser aquela mulher misteriosa que, certo dia, para lá foi morar. Mas algo mudou entre ti e meu pai pois, ao se cruzarem, meu pai, perante a senhora que tinha pela sua frente (de quem chegou a afirmar que não era pessoa que visse com bons olhos, apesar de ser detentora de uma cultura superior), a saudava com um simples viva. E então, para meu espanto, ela que era tão altiva perante seus vizinhos, tornava-se outra e respondia bom dia ou tarde conforme a altura do dia. Eu questionava-me sobre a diferença de saudações entre os dois. Ao ver-me tão sorridente respondia-me que ambas as saudações eram ternas, e assim ainda mais se acentuava o mistério, que se alongou.

Acabei o ensino primário, como os demais, e, com dez anos, fui trabalhar apesar dos apelos do professor para não o fazer. Entrava assim no mundo do trabalho, pois era preciso mais dinheiro e havia mais bocas para sustentar (naquele tempo mais de 60%) das crianças a quem terminasse a escola era esse o caminho a seguir, em busca desse vil metal para ajudar o sustento dos seus.

Mas vamos ao resto da história. As visitas à senhora foram rareando. O meu trabalho ficava a cerca de cinco ou seis quilómetros de casa, trabalhava-se 8 diárias vezes 6 dias. Contudo (sobre este assunto por aqui fico, porque havia muito para contar), e continuando o caso, a senhora foi continuando com a reputação que tinha; meu pai em nada alterou a sua maneira de a cumprimentar. Ao cruzarem-se, ele dizia um simples Viva e ela respondia Como está Sr. José.
Casei, mudei de lugar, ainda conheceu dois dos meus três filhos.

Entretanto, a 25 de Abril de 1974, dá-se o movimento das FORÇAS ARMADAS, já muito tempo esperado.
E passados alguns dias eis que, sabendo através de meu pai onde eu morava, me foste visitar, acompanhada do teu marido, professor de uma universidade em Bordéus, França, e já com o teu filho. Foi então que desvendaste o teu segredo: a pessoa que certas noites era vista a entrar em tua casa a altas horas era teu marido que, como muitos, teve de fugir, só porque suas ideias eram contrárias às dos que estavam no poder. Para fora iam cérebros, que tanta falta nos faziam, e se a isto juntarmos os que o faziam para fugir à guerra nas Colónias, temos o estrebuchar de um país.

Este professor universitário, com quem tive o prazer de conviver ainda algum tempo, falava da falta de uma formação política capaz, facto que fez com que aparecessem políticos feitos à pistola. Fiquei então a saber a razão pela qual meu pai, quando se cruzava com a minha heroína, a saudava com um viva. É que seu nome era Maria da Conceição da LIBERDADE. A tua honestidade foi reconhecida (salvo o das más línguas, que sempre as houve). Tiveste a felicidade de ainda viveres com teu marido poucos, mas felizes anos.
Meu pai faleceu sem nunca saberes quem eras. Poucas mais vezes te vi, até que, há cerca de dez anos, fui questionado por uma pessoa onde vivias, se eu seria o teu menino, responsável pela quebra de uma parte dos vidros das tuas janelas. A teu pedido fui-te visitar e vi-te com cerca de 90 anos. Levava comigo um dos netos. Reconheceste-me e, sempre com esse teu sorriso adorável, me afirmaste, “Os meninos da minha rua já têm netos”.

Pouco tempo mais viveste, parece que o esperavas, e passados estes anos recordo-te com saudade, A MINHA DAMA MISTÉRIO que, nos anos 40, que foi viver para a minha rua. Qual o porquê de hoje me lembrar de ti? Talvez seja o ter desfolhado o livro velhinho os meus amores de Trindade Coelho que, carinhosamente, me ofereceste, e assim, começaste a ensinar-me a saborear e ler os clássicos, e a fazer e tentar compreender a mensagem do conteúdo dos mesmos. E com saudade transcrevo, amiga, um poema que adoravas declamar e cujo nome não sabias:

Apaga-te, lua’
- lâmpada dos lírios e dos cães.
Não finjas de alma
Esta realidade violenta
Que me dói até ás raízes

Não pintes de mistério
Estas bocas de fome
Onde só há metafísicas de pão negro.

Não abras asas
Na planície das pedras
De fogo apodrecido.

Apaga-te lua’
Peço-te que te apagues’
Para os tímidos poderem amar á vontade na sombra
Sem olhos,
Para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas
Às castelães de carne invisível,
Para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo
Da noite,
Para que os trémulos morrerem heróicos em barricadas
De imaginação,
Para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão
Verde dos caixotes,
Para os cegos dizerem* Não vemos porque não há luar,
Para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a
Arrastar mantos negros,
Para os escorraçados saírem dos canos lôbregos,
E forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
Para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
Onde só os pobres deitaram moedas falsas,
Para os visionários mergulharam as mãos na noite
Em busca de outra lua sem vincos de caveira,
Para as mães das caves convencerem os filhos:«Moramos
Num palácio às escuras«
Ouviste, lua?
Apaga-te
-lâmpada dos cães e dos poetas magros
.

Ao LEMBRAR-TE passados estes anos, cito este poema, estejas onde estiveres, MINHA DAMA MISTÉRIO DE 1940

José Mendonça, Janeiro de 2009

Com AMOR continuo a ler OS MEUS AMORES DE Trindade Coelho

2 comentários:

  1. Já tinha tido o privilégio de ler e ouvir esta história...mas gostei mais ainda desta vez!
    Obrigada Amigo.
    Bjs.
    Maria Mamede

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  2. Enterneci-me na primeira vez que li "A Dama Mistério" e ao reler a emoção permanece.

    Teresa Morais

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