Mas voltando à nossa dama que era uma figura ímpar, usando
óculos escuros só 2 ou3 pessoas é que saberiam o nome dela, se é que saberiam,
pois o verdadeiro acho que o não sabia, vivia só, e a minha mãe que lhe servia
o pão certa vez pediu-lhe, se em vez de atirar ao lixo jornal do dia anterior,
se o dava para o meu pai o ler, aceite o pedido, passei a ir busca-lo, ao dia
seguinte ao da sua publicação, e não é que certo dia, quando eu vou buscar o
jornal, não sei se talvez, como eu andasse na escola perguntou-me se eu queria
que ela me emprestasse um livro para ler. Claro era o meu sonho, ainda para
mais vindo de uma senhora de classe diferente daquela que me rodeava, mas,
diz-me ela, com a condição que depois de o ter lido o descrever, e se a ela
agradasse e visse que eu o lhe narrava, estava dentro do contexto do me tinha
emprestado, teria livros daí em
diante. E mais, convidou-me a entrar em sua casa, mostrou-me
uma divisão do prédio ao, talvez a divisão mais opulenta daquela casa, e então
dou em mim completamente assombrado com estava vendo as paredes repletas de
livros da casa, a mais opulenta daquela pequena rua onde eu morava, e,
chegando-se a uma estante, tirou um livro e fitando-me, me exclamou: “Primeiro
nunca te iludas pelo belo aspecto da capa de um livro mas sim pelo seu
conteúdo. Segundo lê como estejas a ver um filme e verás que há escritores a
descreverem certos lugares como se nós estivéssemos a percorre-los.”
Então pegou num livro e entregou-mo, o romance “Os meus
amores” de TRINDADE COELHO (isto pela volta de 1940).
Ainda hoje tenho esse livro, já velhinho, mas guardo-o
religiosamente, oferta dessa dama misteriosa, e então quando o foi entregar já
depois de o ter lido, apressadamente e o entreguei e o descrevi. Esperei que o
e exame lhe agradasse para que a promessa fosse cumprida quando, depois de lho
entregar para surpresa minha, ela me diz que para princípio não está mal, e
como prémio, “aqui tens o livro que te ofereço com imenso gosto”.
Assim começou a primeira de muitas leituras de livros, sendo
ponto assente que tinha de os descrever, este acto e as saudades dessa senhora,
de cuja elevada cultura me fui apercebendo.
No fim da Segunda Guerra Mundial, naquele famoso dia em que
o povo festejava através da rádio e do tocar dos sinos, ela desafiou-me para
irmos para a rua para a festa que lá se fazia, caso único e enorme que
felizmente jamais vi. “Então me disseste com as lágrimas nos olhos, que eras
sozinha, e então afirmei-te que teria de pedir ao meu pai, se caso o podia
fazer, ir contigo não é que ele deu-me o consentimento, não deixando de me
avisar que tencionava em breve, falar contigo sobre as minhas idas a tua casa,
pois tinha tido conhecimento de certas visitas nocturnas que te faziam.
Contei-te o caso e vi-te com lágrimas nos olhos. Já não querias sair, mas
depois de tanto incutir, lá fomos com o povo e com a alegria, pensando que logo
no seguinte dia, a fome, a tuberculose e tudo que de mal existia naquela altura
acabariam como que por milagre. Afinal, ainda demorou anos a deixarmos de pôr
rebuçados ao almoço, para, o adoçar.
Mas, voltando ao assunto, a minha dama misteriosa, ao
contar-lhe o que meu pai te disse, quando tu própria, foste falar com ele e eu
ao perguntar-te o que lhe disseste para, assim com tanta facilidade, ele mudar
de ideias, me disseste que enquanto eu estava à tua beira, não partia os vidros
das tuas janelas a jogar a bola defronte a tua casa.
Quantas vezes me lembro das tardes em que, juntos,
merendava-mos e me dizias que a faca era na mão direita, e a esquerda servia
para o talher, e eu, muito sério, perguntava à mão direita “importas-te de
ficar com o garfo?” Então via-te sorrir, via esse olhar de alguém a quem
tiraram alguma coisa de muito sagrado, e logo rolavam pelo teu rosto duas
lágrimas. E quanto me custava ver-te assim. Muitas vezes pensei ser eu causa
dessa tristeza.
E assim fui crescendo, agora já lendo, à tua frente, livros
de Camilo, Eça de Queiroz Júlio Diniz, Arnaldo Gama, Campos Júnior e, como não
podia deixar de ser, Trindade Coelho. E de todos tinhas um apontamento a dar em
relação à forma como escreviam e à sua obra.
Falaste-me do melhor escultor que tínhamos, Soares dos Reis,
a quem os melhores escultores do mundo deram o prémio de melhor obra ao
Desterrado. Contaste ainda que, invejando tal galardão, alguns duvidaram que
tal obra fosse dele, catalogando-a de PLÁGIO, quando todo o Mundo se deleitava
com as suas maravilhosas obras. A palavra plágio, injustamente atribuída à sua
obra, levou a que o escultor, o maior que tivemos com prémios internacionais,
se tivesse suicidado.
E assim a amizade crescia proporcionalmente aos teus
ensinamentos. E nunca para aquele povo deixavas de ser aquela mulher misteriosa
que, certo dia, para lá foi morar. Mas algo mudou entre ti e meu pai pois, ao
se cruzarem, meu pai, perante a senhora que tinha pela sua frente (de quem
chegou a afirmar que não era pessoa que visse com bons olhos, apesar de ser
detentora de uma cultura superior), a saudava com um simples viva. E então,
para meu espanto, ela que era tão altiva perante seus vizinhos, tornava-se
outra e respondia bom dia ou tarde conforme a altura do dia. Eu questionava-me
sobre a diferença de saudações entre os dois. Ao ver-me tão sorridente
respondia-me que ambas as saudações eram ternas, e assim ainda mais se
acentuava o mistério, que se alongou.
Acabei o ensino primário, como os demais, e, com dez anos,
fui trabalhar apesar dos apelos do professor para não o fazer. Entrava assim no
mundo do trabalho, pois era preciso mais dinheiro e havia mais bocas para
sustentar (naquele tempo mais de 60%) das crianças a quem terminasse a escola
era esse o caminho a seguir, em busca desse vil metal para ajudar o sustento
dos seus.
Mas vamos ao resto da história. As visitas à senhora foram
rareando. O meu trabalho ficava a cerca de cinco ou seis quilómetros de casa,
trabalhava-se 8 diárias vezes 6 dias. Contudo (sobre este assunto por aqui
fico, porque havia muito para contar), e continuando o caso, a senhora foi
continuando com a reputação que tinha; meu pai em nada alterou a sua maneira de
a cumprimentar. Ao cruzarem-se, ele dizia um simples Viva e ela respondia Como
está Sr. José.
Casei, mudei de lugar, ainda conheceu dois dos meus três
filhos.
Entretanto, a 25 de Abril de 1974, dá-se o movimento das
FORÇAS ARMADAS, já muito tempo esperado.
E passados alguns dias eis que, sabendo através de meu pai
onde eu morava, me foste visitar, acompanhada do teu marido, professor de uma
universidade em Bordéus, França, e já com o teu filho. Foi então que
desvendaste o teu segredo: a pessoa que certas noites era vista a entrar em tua
casa a altas horas era teu marido que, como muitos, teve de fugir, só porque
suas ideias eram contrárias às dos que estavam no poder. Para fora iam
cérebros, que tanta falta nos faziam, e se a isto juntarmos os que o faziam
para fugir à guerra nas Colónias, temos o estrebuchar de um país.
Este professor universitário, com quem tive o prazer de conviver
ainda algum tempo, falava da falta de uma formação política capaz, facto que
fez com que aparecessem políticos feitos à pistola. Fiquei então a saber a
razão pela qual meu pai, quando se cruzava com a minha heroína, a saudava com
um viva. É que seu nome era Maria da Conceição da LIBERDADE. A tua honestidade
foi reconhecida (salvo o das más línguas, que sempre as houve). Tiveste a
felicidade de ainda viveres com teu marido poucos, mas felizes anos.
Meu pai faleceu sem nunca saberes quem eras. Poucas mais
vezes te vi, até que, há cerca de dez anos, fui questionado por uma pessoa onde
vivias, se eu seria o teu menino, responsável pela quebra de uma parte dos
vidros das tuas janelas. A teu pedido fui-te visitar e vi-te com cerca de 90
anos. Levava comigo um dos netos. Reconheceste-me e, sempre com esse teu
sorriso adorável, me afirmaste, “Os meninos da minha rua já têm netos”.
Pouco tempo mais viveste, parece que o esperavas, e passados
estes anos recordo-te com saudade, A MINHA DAMA MISTÉRIO que, nos anos 40, que
foi viver para a minha rua. Qual o porquê de hoje me lembrar de ti? Talvez seja
o ter desfolhado o livro velhinho os meus amores de Trindade Coelho que,
carinhosamente, me ofereceste, e assim, começaste a ensinar-me a saborear e ler
os clássicos, e a fazer e tentar compreender a mensagem do conteúdo dos mesmos.
E com saudade transcrevo, amiga, um poema que adoravas declamar e cujo nome não
sabias:
Apaga-te, lua’
- lâmpada dos lírios e dos cães.
Não finjas de alma
Esta realidade violenta
Que me dói até ás raízes
Não pintes de mistério
Estas bocas de fome
Onde só há metafísicas de pão negro.
Não abras asas
Na planície das pedras
De fogo apodrecido.
Apaga-te lua’
Peço-te que te apagues’
Para os tímidos poderem amar á vontade na sombra
Sem olhos,
Para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas
Às castelães de carne invisível,
Para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo
Da noite,
Para que os trémulos morrerem heróicos em barricadas
De imaginação,
Para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão
Verde dos caixotes,
Para os cegos dizerem* Não vemos porque não há luar,
Para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a
Arrastar mantos negros,
Para os escorraçados saírem dos canos lôbregos,
E forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
Para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
Onde só os pobres deitaram moedas falsas,
Para os visionários mergulharam as mãos na noite
Em busca de outra lua sem vincos de caveira,
Para as mães das caves convencerem os filhos:«Moramos
Num palácio às escuras«
Ouviste, lua?
Apaga-te
-lâmpada dos cães e dos poetas magros
.
Ao LEMBRAR-TE passados estes anos, cito este poema, estejas
onde estiveres, MINHA DAMA MISTÉRIO DE 1940
José Mendonça, Janeiro de 2009
Com AMOR continuo a ler OS MEUS AMORES DE Trindade Coelho
Já tinha tido o privilégio de ler e ouvir esta história...mas gostei mais ainda desta vez!
ResponderEliminarObrigada Amigo.
Bjs.
Maria Mamede
Enterneci-me na primeira vez que li "A Dama Mistério" e ao reler a emoção permanece.
ResponderEliminarTeresa Morais