“EL-REI”,
era assim que no tempo da Monarquia o povo clamava por justiça. “Ó da Guarda” é
a forma como, agora, eu brado, perante a transformação do Cinema da minha terra, S.
Mamede de Infesta, numa loja de
chineses.
Soube que o cine da minha terra, como em demais lugares, fechou e este acto é mais uma
machadada na cultura desta cidade, que como aldeia me viu nascer. Naquele
cinema, tal como no cinema Paraíso do Giuseppe Tornatore, vi filmes de
Neo-Realismo, filmes como o Ladrão de Bicicletas,
A Linha Branca - onde se divide com uma simples risco branco duas Nações. Nele vi também Quatro Penas
Brancas, com repreensões da fila atrás mim, por ler as legendas em voz alta
para que meu pai compreendesse o que via.
O meu
cinema tinha a tela de projecção tão próxima das primeiras cadeiras que, se o
filme projectado envolvia aviões a aterrar, ouvia-se alguém gritar “baixa-te!”.
E não é que havia sempre alguém que caía no logro?
No meu
cinema estavam expostos quadros no átrio e quando queríamos brincar com os
namoros, aproveitávamos o ensejo para ir ver uma sessão. Já no local, dávamos
umas voltas pelos quadros e, quando questionados sobre o que estávamos a ver, a
resposta era invariavelmente esta: uma sessão de quadros…
Mas o cinema de S. Mamede tem uma história. Na sua
génese esteve um propósito altruísta, que consistia no sustento do Ensino Público daqueles que, terminando
o ensino Primário e não tendo posses para ir estudar para o Porto, poderiam ali
prosseguir os estudos.
Quem descreve este texto é o filho da Rosinha do Abade. Quando as pessoas
perguntavam a meu pai por ela, ele assim respondia com garotice: “Do Abade ela não é; é minha e só minha”. A
certa altura, questionei meu pai por que razão minha mãe tinha aquele apelido.
E foi da explicação dada que soube a história do meu adorado cinema.
Em 1925, o Bispo do Porto da altura destacou para S.
Mamede de Infesta o pároco José de Pinho. Com ele veio uma governanta chamada
Maria Albina Resende. O meu pai descrevia este padre como uma pessoa de cultura
elevada para essa época. Do seu ciclo de amigos constava, por exemplo, o
Marechal Gomes da Costa que o pároco visitou diversas vezes o visitou no seu
exílio. Ambos tinham estado juntos na guerra
de 1914 a
1918. Foi o padre José de Pinho, um excelente orador, que fez o elogio
fúnebre no funeral do Marechal.
Além da cultura e do dom da oratória, o padre José
de Pinho era também uma pessoa muito compreensiva. Natural de Válega, concelho
de Ovar, foi sensível ao pedido feito pela criada, no sentido de trazer da sua
aldeia de Válega as suas duas irmãs que lá se encontravam, órfãs de pai,
juntamente com a mãe louca. O pároco mandou-as buscar e ajudou a criá-las aceitando-as
como serviçais da sua casa.
O Padre Pinho era uma figura popular. Não se inibia
de entrar em qualquer lugar. Fosse num tasco ou num café, jogava cartas com
qualquer pessoa. Chegou até a ver cinema ao ar livre, junto de uma escola
defronte a uma barraca que vendia loiça
de Barcelos. Ao ver quanta falta
fazia o cinema à população, expôs a diversas pessoas um projecto para fazer uma
sala de espectáculos. Porém, havia um senão: a localização do cinema. Alguém se
lembrou que a família Neves tinha um armazém de vinhos que pensava talvez vir a
encerrar. A família do dito prédio acedeu. Foi então criada uma comissão da
qual fazia parte Marcelino Ferreira, proprietário da Quinta da Estrela.
Toda a receita que provinha do cinema revertia a
favor do colégio que, tanto quando julgo saber, ficava por cima de uma loja que
pertencia a Augusto das fazendas [ hoje é o café Lareira].
O colégio ou Instituto chegou a funcionar, com
professores amigos do Padre Pinho, alguns dos quais trabalhavam graciosamente.
Contudo, ao Bispo do Porto não agradava o movimento que em S. Mamede existia,
principalmente o relacionado com forças afectas ao movimento 28 de Maio. A
História descreve que depois do cerco de Lisboa e da rendição do governo na era
de Gomes da Costa, deu-se uma contra revolução comandada por Óscar Carmona, na
qual entrou Salazar. Baseado em cartas anónimas mandadas por certa beatice da
época, dizendo mal da governanta do pároco, em 1935 o Bispo transferiu o padre José
de Pinho para Espinho, afastando-o de S. Mamede. Foi um acto político, pois o
governo não queria estes movimentos, e simultaneamente uma forma de o povo
enxovalhar a criada Maria Albina de Resende.
Minha mãe, Maria Rosa Pereira Mendonça, vendedeira
de pão, recebeu em sua casa a sua irmã. No dia seguinte, chegou a casa sem um
único pão vendido.
Políticas à parte, foi assim que durante o período
de 1925 a
1935, este Homem mobilizou uma aldeia que agora é uma Cidade, como Maria Mamede
descreve de forma sublime nos seus excelentes versos.
Custóias, 16 de Dezembro de 2012
O autor deste blog apresenta-se com a simplicidade de quem conta histórias à mesa de um café. E quem lê, mesmo não tendo vivido naquele tempo ou naquele lugar, embarca neste reavivar de memórias.
ResponderEliminarNas suas narrativas, o autor consegue fazer-nos (sor)rir, emocionar e até reflectir acerca de momentos da vida que, apesar de difíceis, nos são descritas com humor, optimismo, encanto e ternura.
Difícil não é apresentar factos. Difícil é apresentar uma narrativa que se distinga de uma simples cronologia e que, sem perder objectividade, nos encha o coração e que, a mim, pelo menos, me impele a olhar várias vezes para a fotografia do perfil, com um sorriso.
Há quem não considere as críticas de familiares e amigos, por achar que não são objectivas. Mas ser objectivo não será também reconhecer a difícil arte de partilhar vivências e sentimentos?
Susana Pinto
Concordo plenamente com a comentadora acima...o José Mendonça, meu conterrâneo e Amigo, cuja esposa a Luisinha chegou a pegar-me ao colo, são gente da minha terra natal, dessa minha Aldeia que, há alguns anos já é Cidade, que apesar dos pesares têm dela boas recordações, tal como eu.
ResponderEliminarTambém vi muitos filmes no Cinema "do careca" ou "do sr. Augusto dos panos", onde levada pela mão de meu pai assisti, ainda muito menina, a essa, para mim nova arte, que ainda hoje me apaixona!
Beijos
Maria Mamede
O cinema do Sr. Augusto ( e pai das grandes amigas da minha mãe) também é o meu Cinema Paraíso. Nasci em S. Mamede de Infesta e no cinema vi os meus primeiros filmes no final dos anos 50, dos quais só recordo, com emoção, os do Joselito. Também no meu Cinema Paraíso me estreei com 8 anos como "actriz" e "cantora" nos espectáculos que o Domingos Soares (Ginja)com tanta criatividade e mestria levava à cena. Lembro-me de ser o "rapa" e da minha cartola amarela num número musical chamado "Os quatro grandes".
ResponderEliminarO seu artigo veio enriquecer o meu imaginário e partilho a sua indignação por ver o nosso cinema transformado num espaço comercial indigno. Nós, os mamedenses, deveríamos ter tido uma atitude menos passiva. Se calhar, merecemos isto.