sexta-feira, 29 de março de 2013

Lendas do leito do rio Leça (capela de S. Pedro)

Capela de S. Pedro (lugar de Araújo)

        Situada no lugar de Araújo, a capela de S. Pedro é apelidada pelo povo como o Lugar do Carvalho Santo, pois foi perto desta capela que se deu o fenómeno de, após um severo temporal em 1895 e depois de muitos dias de chuva, um carvalho situado num campo sobranceiro a outro em terreno argiloso, se ter deslocado intacto para o campo inferior e assim se ter conservado. O povo ficou de tal forma impressionado com o mistério deste fenómeno que, daí em diante, passou a deslocar-se, em massa, a uma pequena presa de água, que se encontrava junto àquela árvore, em busca de água para lavar olhos, pés, pernas e feridas. Durante três domingos consecutivos, a concorrência de romeiros e de carruagens do Porto excedeu tudo o que se possa imaginar em romarias de maior nomeada.
                          
                                Do tronco do carvalho santo, o escultor bracarense Celestino de Queirós esculpiu uma imagem de Nossa Senhora dos Remédios que, actualmente, está exposta ao culto na capela de S. Pedro, num dos altares laterais. Por vezes, depois da designação da Virgem (Senhora dos Remédios), acrescenta-se de Carvalho Santo.
                                      
       Abaixo encontra-se um excerto da Monographia do Concelho de Bouças, de Dr. Fernando Godinho de Faria, sobre o extraordinário fenómeno:

         "Neste bonito lugar Araújo, além de escolas secundárias, e piscina, existe uma Universidade Sénior onde se leccionam imensas disciplinas de que se destacam as Línguas, a Informática, a História, Nacional e Mundial, Literatura Portuguesa, e outras actividades de entretenimento e de enriquecimento pessoal. O seu lema é ‘Deixe os Bancos dos jardins e venha até NÓS’."

José Mendonça 
in Lendas do leito do rio Leça


Lendas do leito do rio Leça (Mosteiro de Leça do Balio)

Mosteiro de Leça do Balio

Ao consultar a obra do escritor Arnaldo Gama, cuja escrita nos apaixona pela forma soberba como descreve antigos lugares da cidade do Porto, e pelo encanto invulgar que confere à sua obra A Última Dona de S. Nicolau (em que descreve o que era um copista no século XVIII, e a transição para caracteres móveis inventada por Guttenberg, ele próprio um copista), dei por mim a reler O Balio de Leça, obra em que se explica que o mosteiro que hoje vemos foi outrora composto por quatro torres, e uma Quinta que se encontra nas traseiras, encostada ao Monte de Santana.

Fora do Mosteiro, em pleno adro, encontra-se um cruzeiro com Cristo crucificado, uma soberba obra atribuída a um frade a quem chamavam o Moço.
Perto do Mosteiro passava, e continua a passar, o rio Leça, navegável até à Ponte das Varas, que chegava – em tempo de cheias – a inundar os subterrâneos do dito Mosteiro. O escritor diz-nos que, no ano de 1324, os freires, à noite, faziam escapadelas pelo monte de Santana e assaltavam moças que viviam na encosta, o que fazia deles pouco hospitaleiros. Porém, também davam abrigo aos Cavaleiros da Ordem de Malta, principalmente aos que tinham visitado os lugares santos. Por lá passaram D. Álvaro Gonçalves Pereira, pai do Condestável D. Nuno Álvares Pereira, e o seu irmão que morrera na batalha de Aljubarrota, ao serviço de Castela.

O romancista presenteia-nos com lendas e factos. Entre outros episódios, conta que, no reinado de D. Dinis, Estêvão Gontines se queixou ao Balio Vasques Pimentel de que a sua mulher praticava adultério com um frei daquele hospital dos templários. Confrontada com esta suspeita, a mulher do ferreiro logo negou a infâmia de que se sentia vítima, e para provar a sua inocência, propôs-se colocar as mãos no fogo, punição logo aceite pelos frades ali presentes. Marcado o dia da penitência, foi o próprio marido Gontines incumbido de pôr o ferro no fogo, e de mostrar aos presentes que o ferro estava em brasa. As mãos da acusada foram, então, embrulhadas no ferro, e ao fim de determinado tempo, quando foram retirados os panos, verificou-se que as mãos da mulher estavam limpas, sinal da sua inocência. Esta é a lenda ou facto descrito por Arnaldo Gama, que está na base do dito popular: “Eu até punha as minhas mãos no fogo”. Este mesmo Balio foi sepultado a seu pedido na entrada do Mosteiro, por forma a que todos que lá entrem passem por cima da sua sepultura. 


Este mosteiro testemunhou também o casamento clandestino de D. Fernando e D. Leonor.

José Mendonça 
in Lendas do leito do rio Leça

Estes Sítios...

Relembrando este passado, não resisto a recordar o poema “Estes Sítios” de Almeida Garrett:

Almeida Garrett

Estes Sítios
Olha bem estes sítios queridos,
Vê-os bem neste olhar derradeiro…
Ai! o negro dos montes erguidos,
Ai! o verde do triste pinheiro!
Que saudades, que deles teremos…
Que saudade! ai, amor, que saudade!
Pois não sentes, neste ar que bebemos,
No acre cheiro da agreste ramagem,
Estar-se alma a tragar liberdade
E a crescer de inocência e vigor!
Oh! aqui, só se engrinalda
Da pureza da rosa selvagem,
E contente aqui só vive Amor.
O ar queimado das salas lhe escalda
De suas asas o níveo candor,
E na frente arrogada lhe cresta
A inocência infantil do pudor.
E oh! Deixar tais delícias como esta!
E trocar este céu de ventura
Pelo inferno da escrava cidade!
Vender alma e razão à impostura 
Ir saudar a mentira em sua corte,
Ajoelhar em seu trono à vaidade,
Ter de rir nas angústias da morte,
Chamar vida ao terror da verdade…
Ai! não, não…nossa vida acabou,
Nossa vida aqui toda ficou
Diz-lhe adeus neste olhar derradeiro,
Dize à sombra dos montes erguidos,
Dize-o ao verde do triste pinheiro,
Dize-o a todos os sítios queridos
Desta ruda, feroz soledade,
Paraíso onde livres vivemos,
Oh! saudades que dele teremos,
Que saudade! ai, amor, que saudade!

“Estes Sítios”, FOLHAS CAÍDAS, 
de Almeida Garrett


sábado, 23 de março de 2013

Lendas do leito do rio Leça (quem foi Elaine Sanceau?)

Gentes e lugares com história
(Lendas que perduram)

Ao reler o livro de Stefan Zweig, Os Grandes Momentos da Humanidade, relembrei como nasceu a cidade de São Francisco, na América do Norte. Nesta obra, o escritor relata que, em 1838, naquele lugar pouco povoado, habitava uma Ordem de Franciscanos (com base na qual foi dado aquele nome) e alguns pescadores.

Naquela época, assim nos afirma o escritor, toda a gente tinha o sonho de partir em busca dum futuro melhor, e, na Europa, dava-se terra a quem a quisesse trabalhar. João Augusto Suter, residente perto de Basileia, do outro lado do Oceano, era um homem a quem a vida não sorria. Tendo ouvido falar nesse Novo Mundo, resolveu seguir a sorte desses desesperados que deixavam as suas terras e desembarcou na Califórnia. Ao tomar conhecimento do lugar de pescadores, em São Francisco, resolveu erguer uma grande herdade e cultivá-la, depois de ter obtido, junto das autoridades da Califórnia, a concessão daqueles terrenos durante dez anos. Aí, Suter criou gado, rentabilizou os terrenos e chegou mesmo a dizer que era o homem mais rico do mundo. Cinco anos volvidos desde que começou a sua empreitada, foi abordado por um homem da sua confiança que lhe mostrou umas pedras de cor amarela que se tornaram visíveis numa construção que estava a ser feita. Suter concluiu que se tratava de ouro, pedindo, por isso, o máximo sigilo ao seu empregado, que não foi capaz de o manter, contando o episódio, unicamente, à sua mulher. Quando, no dia seguinte, Suter viu as suas terras, deparou-se com uma destruição total de todo o seu trabalho, em virtude de uma louca corrida ao ouro. Assim, o homem mais rico do mundo, como ele se denominava, tornou-se no homem mais pobre.

Andou anos pelos tribunais, queixando-se de ter sido espoliado dos seus bens, e sempre que o lamentavam, afirmava: “É a vida, e cada terra e cada homem têm a sua história ou sua lenda”. Anos mais tarde, os tribunais acabaram por dar razão à sua queixa. Quando descia as escadas do tribunal da Califórnia, foi vítima de um ataque cardíaco e ali faleceu.

Relembrando este facto que deu origem ao nascimento da grande cidade de São Francisco, na América, se recorda a frase de que qualquer lugar tem uma história. E, de facto, assim é.

Em 1930, veio viver para uma propriedade situada em Leça do Balio, chamada Quinta das Camélias, o embaixador inglês, à data, que tratava dos negócios da Inglaterra no Porto. Consigo, trazia a sua filha, Elaine Sanceau, a quem o povo chamava Miss Sanceau. Nascida a 25 de Julho de 1826, faleceu com 82 anos. Excepto por ocasião da visita que fazia à irmã, em Matosinhos, Elaine Sanceau não abandonava a sua adorável Quinta, e lá se fez uma grande escritora. 

Apaixonada pela História de Portugal, escreveu cerca de doze livros, no âmbito dos seus estudos sobre os descobrimentos portugueses. É autora, entre outras, das seguintes obras: D. Henrique, o Navegador, Afonso de Albuquerque, D. João de Castro, A Viagem de Vasco da Gama, D. João II, Capitães do Brasil. E sempre que alguém lhe perguntava como foi viver para aquele lugar, ela respondia que estava numa terra que, como todas, respirava história. À esquerda tinha a Quinta do Alão com seus belos jardins, atribuídos ao arquitecto que desenhou os jardins do Palácio de Cristal. Do outro lado, tinha o imponente Mosteiro. Um pouco mais acima, a Quinta do Chantre, obra atribuída ao grande arquitecto Nasoni. “Como vêm”, dizia, “a História está em qualquer lado”.

Do rei português D. João II, esta senhora inglesa disse: “A sua passagem pelo trono, embora relativamente breve, teve importância transcendente na história do mundo. O reinado de D. João corrigiu os erros que vinham de trás e preparou tudo para a futura era de glória”.

Era assim a escrita de Miss Sanceau, repleta de pormenores que, para muitos, poderiam ser secundários, mas que a escritora destacava como ninguém. Partiu da sua quinta para a derradeira viagem – o cemitério da Igreja Anglicana, no Porto.

Um poema de Castro Reis, homenageando a escritora, diz muito mais do que atrás ficou dito, e simboliza a minha homenagem a Elaine Sanceau...


Excerto de "Lendas do leito do rio Leça",
Custóias 23 de Abril de 2011
                      José Mendonça

Elaine Sanceau


Elaine Sanceau 
(Boletim Nº 23  Bibl. Publ. Mun. Matosinhos 1979)


Quem, como tu, de Pensamento alado,
Páginas de oiro e luz, nos ofereceu,
Que o teu saber, de espírito iluminado
Alto ergueu, como nobre apostolado
Continua a viver, pois não morreu!

Quem, como tu, em sentimentos nobres,
Vivia para o bem, como Deus quer,
Seu coração abrindo para os pobres:
De glória imortal hoje te cobres,
Porque soubeste ser – grande Mulher.

Teu elevado espírito de Amor
Pela História da Pátria de Camões:
Teve em ti, altos rasgos de esplendor
E cânticos de excelsas devoções.

Escritora notável, de Luz feita.
Legou-nos uma Obra magistral!...
Grande historiadora, de Alma eleita,
Morreu, como viveu, insatisfeita,
Por muito ter amado Portugal.

 Porto, Maio de 1979, Castro Reis

Azulejos da estação de comboios (linha de Leixões) de S.Mamede de Infesta



A Dama Mistério que nos anos 40 foi viver para a rua onde eu morava


Pelos meus 7 ou 8 anos de idade, foi viver para a rua, onde nasci e morei até aos 25 anos, uma senhora que, pela sua maneira de estar, se distinguia dos demais residentes daquele lugar, então o povo titulou-a a mulher mistério, talvez por ter uma maneira peculiar de vestir, vivia sozinha, exilava-se daquela gente modesta, na maioria, vivendo de profissões como, vendedeiras de pão, como minha mãe, e empregados de construção, padeiros, como meu pai, enfim uma rua onde de tempos a tempos se atravessa-se um carro no nosso campo de futebol que era a rua, com 2 pedras a sinalizar as balizas, nossas chuteiras eram os nossos dedos dos pés que ao fim de certo desgaste acabavam por partirem-se ou ficar torcidos, e também éramos peritos em partir os vidros das portas e janelas, embora lá tivéssemos alguns CRISTIANOS, mas eram mais tortos, do que o nosso ídolo de agora.

Mas voltando à nossa dama que era uma figura ímpar, usando óculos escuros só 2 ou3 pessoas é que saberiam o nome dela, se é que saberiam, pois o verdadeiro acho que o não sabia, vivia só, e a minha mãe que lhe servia o pão certa vez pediu-lhe, se em vez de atirar ao lixo jornal do dia anterior, se o dava para o meu pai o ler, aceite o pedido, passei a ir busca-lo, ao dia seguinte ao da sua publicação, e não é que certo dia, quando eu vou buscar o jornal, não sei se talvez, como eu andasse na escola perguntou-me se eu queria que ela me emprestasse um livro para ler. Claro era o meu sonho, ainda para mais vindo de uma senhora de classe diferente daquela que me rodeava, mas, diz-me ela, com a condição que depois de o ter lido o descrever, e se a ela agradasse e visse que eu o lhe narrava, estava dentro do contexto do me tinha emprestado, teria livros daí em diante. E mais, convidou-me a entrar em sua casa, mostrou-me uma divisão do prédio ao, talvez a divisão mais opulenta daquela casa, e então dou em mim completamente assombrado com estava vendo as paredes repletas de livros da casa, a mais opulenta daquela pequena rua onde eu morava, e, chegando-se a uma estante, tirou um livro e fitando-me, me exclamou: “Primeiro nunca te iludas pelo belo aspecto da capa de um livro mas sim pelo seu conteúdo. Segundo lê como estejas a ver um filme e verás que há escritores a descreverem certos lugares como se nós estivéssemos a percorre-los.”
Então pegou num livro e entregou-mo, o romance “Os meus amores” de TRINDADE COELHO (isto pela volta de 1940).
Ainda hoje tenho esse livro, já velhinho, mas guardo-o religiosamente, oferta dessa dama misteriosa, e então quando o foi entregar já depois de o ter lido, apressadamente e o entreguei e o descrevi. Esperei que o e exame lhe agradasse para que a promessa fosse cumprida quando, depois de lho entregar para surpresa minha, ela me diz que para princípio não está mal, e como prémio, “aqui tens o livro que te ofereço com imenso gosto”.
Assim começou a primeira de muitas leituras de livros, sendo ponto assente que tinha de os descrever, este acto e as saudades dessa senhora, de cuja elevada cultura me fui apercebendo.

No fim da Segunda Guerra Mundial, naquele famoso dia em que o povo festejava através da rádio e do tocar dos sinos, ela desafiou-me para irmos para a rua para a festa que lá se fazia, caso único e enorme que felizmente jamais vi. “Então me disseste com as lágrimas nos olhos, que eras sozinha, e então afirmei-te que teria de pedir ao meu pai, se caso o podia fazer, ir contigo não é que ele deu-me o consentimento, não deixando de me avisar que tencionava em breve, falar contigo sobre as minhas idas a tua casa, pois tinha tido conhecimento de certas visitas nocturnas que te faziam. Contei-te o caso e vi-te com lágrimas nos olhos. Já não querias sair, mas depois de tanto incutir, lá fomos com o povo e com a alegria, pensando que logo no seguinte dia, a fome, a tuberculose e tudo que de mal existia naquela altura acabariam como que por milagre. Afinal, ainda demorou anos a deixarmos de pôr rebuçados ao almoço, para, o adoçar.

Mas, voltando ao assunto, a minha dama misteriosa, ao contar-lhe o que meu pai te disse, quando tu própria, foste falar com ele e eu ao perguntar-te o que lhe disseste para, assim com tanta facilidade, ele mudar de ideias, me disseste que enquanto eu estava à tua beira, não partia os vidros das tuas janelas a jogar a bola defronte a tua casa.

Quantas vezes me lembro das tardes em que, juntos, merendava-mos e me dizias que a faca era na mão direita, e a esquerda servia para o talher, e eu, muito sério, perguntava à mão direita “importas-te de ficar com o garfo?” Então via-te sorrir, via esse olhar de alguém a quem tiraram alguma coisa de muito sagrado, e logo rolavam pelo teu rosto duas lágrimas. E quanto me custava ver-te assim. Muitas vezes pensei ser eu causa dessa tristeza.
E assim fui crescendo, agora já lendo, à tua frente, livros de Camilo, Eça de Queiroz Júlio Diniz, Arnaldo Gama, Campos Júnior e, como não podia deixar de ser, Trindade Coelho. E de todos tinhas um apontamento a dar em relação à forma como escreviam e à sua obra.

Falaste-me do melhor escultor que tínhamos, Soares dos Reis, a quem os melhores escultores do mundo deram o prémio de melhor obra ao Desterrado. Contaste ainda que, invejando tal galardão, alguns duvidaram que tal obra fosse dele, catalogando-a de PLÁGIO, quando todo o Mundo se deleitava com as suas maravilhosas obras. A palavra plágio, injustamente atribuída à sua obra, levou a que o escultor, o maior que tivemos com prémios internacionais, se tivesse suicidado.

E assim a amizade crescia proporcionalmente aos teus ensinamentos. E nunca para aquele povo deixavas de ser aquela mulher misteriosa que, certo dia, para lá foi morar. Mas algo mudou entre ti e meu pai pois, ao se cruzarem, meu pai, perante a senhora que tinha pela sua frente (de quem chegou a afirmar que não era pessoa que visse com bons olhos, apesar de ser detentora de uma cultura superior), a saudava com um simples viva. E então, para meu espanto, ela que era tão altiva perante seus vizinhos, tornava-se outra e respondia bom dia ou tarde conforme a altura do dia. Eu questionava-me sobre a diferença de saudações entre os dois. Ao ver-me tão sorridente respondia-me que ambas as saudações eram ternas, e assim ainda mais se acentuava o mistério, que se alongou.

Acabei o ensino primário, como os demais, e, com dez anos, fui trabalhar apesar dos apelos do professor para não o fazer. Entrava assim no mundo do trabalho, pois era preciso mais dinheiro e havia mais bocas para sustentar (naquele tempo mais de 60%) das crianças a quem terminasse a escola era esse o caminho a seguir, em busca desse vil metal para ajudar o sustento dos seus.

Mas vamos ao resto da história. As visitas à senhora foram rareando. O meu trabalho ficava a cerca de cinco ou seis quilómetros de casa, trabalhava-se 8 diárias vezes 6 dias. Contudo (sobre este assunto por aqui fico, porque havia muito para contar), e continuando o caso, a senhora foi continuando com a reputação que tinha; meu pai em nada alterou a sua maneira de a cumprimentar. Ao cruzarem-se, ele dizia um simples Viva e ela respondia Como está Sr. José.
Casei, mudei de lugar, ainda conheceu dois dos meus três filhos.

Entretanto, a 25 de Abril de 1974, dá-se o movimento das FORÇAS ARMADAS, já muito tempo esperado.
E passados alguns dias eis que, sabendo através de meu pai onde eu morava, me foste visitar, acompanhada do teu marido, professor de uma universidade em Bordéus, França, e já com o teu filho. Foi então que desvendaste o teu segredo: a pessoa que certas noites era vista a entrar em tua casa a altas horas era teu marido que, como muitos, teve de fugir, só porque suas ideias eram contrárias às dos que estavam no poder. Para fora iam cérebros, que tanta falta nos faziam, e se a isto juntarmos os que o faziam para fugir à guerra nas Colónias, temos o estrebuchar de um país.

Este professor universitário, com quem tive o prazer de conviver ainda algum tempo, falava da falta de uma formação política capaz, facto que fez com que aparecessem políticos feitos à pistola. Fiquei então a saber a razão pela qual meu pai, quando se cruzava com a minha heroína, a saudava com um viva. É que seu nome era Maria da Conceição da LIBERDADE. A tua honestidade foi reconhecida (salvo o das más línguas, que sempre as houve). Tiveste a felicidade de ainda viveres com teu marido poucos, mas felizes anos.
Meu pai faleceu sem nunca saberes quem eras. Poucas mais vezes te vi, até que, há cerca de dez anos, fui questionado por uma pessoa onde vivias, se eu seria o teu menino, responsável pela quebra de uma parte dos vidros das tuas janelas. A teu pedido fui-te visitar e vi-te com cerca de 90 anos. Levava comigo um dos netos. Reconheceste-me e, sempre com esse teu sorriso adorável, me afirmaste, “Os meninos da minha rua já têm netos”.

Pouco tempo mais viveste, parece que o esperavas, e passados estes anos recordo-te com saudade, A MINHA DAMA MISTÉRIO que, nos anos 40, que foi viver para a minha rua. Qual o porquê de hoje me lembrar de ti? Talvez seja o ter desfolhado o livro velhinho os meus amores de Trindade Coelho que, carinhosamente, me ofereceste, e assim, começaste a ensinar-me a saborear e ler os clássicos, e a fazer e tentar compreender a mensagem do conteúdo dos mesmos. E com saudade transcrevo, amiga, um poema que adoravas declamar e cujo nome não sabias:

Apaga-te, lua’
- lâmpada dos lírios e dos cães.
Não finjas de alma
Esta realidade violenta
Que me dói até ás raízes

Não pintes de mistério
Estas bocas de fome
Onde só há metafísicas de pão negro.

Não abras asas
Na planície das pedras
De fogo apodrecido.

Apaga-te lua’
Peço-te que te apagues’
Para os tímidos poderem amar á vontade na sombra
Sem olhos,
Para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas
Às castelães de carne invisível,
Para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo
Da noite,
Para que os trémulos morrerem heróicos em barricadas
De imaginação,
Para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão
Verde dos caixotes,
Para os cegos dizerem* Não vemos porque não há luar,
Para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a
Arrastar mantos negros,
Para os escorraçados saírem dos canos lôbregos,
E forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
Para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
Onde só os pobres deitaram moedas falsas,
Para os visionários mergulharam as mãos na noite
Em busca de outra lua sem vincos de caveira,
Para as mães das caves convencerem os filhos:«Moramos
Num palácio às escuras«
Ouviste, lua?
Apaga-te
-lâmpada dos cães e dos poetas magros
.

Ao LEMBRAR-TE passados estes anos, cito este poema, estejas onde estiveres, MINHA DAMA MISTÉRIO DE 1940

José Mendonça, Janeiro de 2009

Com AMOR continuo a ler OS MEUS AMORES DE Trindade Coelho

segunda-feira, 18 de março de 2013

O meu cinema Paraíso


Rua Godinho de Faria, cine S. Mamede de Infesta (1930)

“EL-REI”, era assim que no tempo da Monarquia o povo clamava por justiça. “Ó da Guarda” é a forma como, agora, eu brado, perante a transformação do Cinema da minha terra, S. Mamede de Infesta, numa loja de chineses.

Soube que o cine da minha terra, como em demais lugares, fechou e este acto é mais uma machadada na cultura desta cidade, que como aldeia me viu nascer. Naquele cinema, tal como no cinema Paraíso do Giuseppe Tornatore, vi filmes de Neo-Realismo, filmes como o Ladrão de Bicicletas, A Linha Branca - onde se divide com uma simples risco branco duas Nações. Nele vi também Quatro Penas Brancas, com repreensões da fila atrás mim, por ler as legendas em voz alta para que meu pai compreendesse o que via.
O meu cinema tinha a tela de projecção tão próxima das primeiras cadeiras que, se o filme projectado envolvia aviões a aterrar, ouvia-se alguém gritar “baixa-te!”. E não é que havia sempre alguém que caía no logro?
No meu cinema estavam expostos quadros no átrio e quando queríamos brincar com os namoros, aproveitávamos o ensejo para ir ver uma sessão. Já no local, dávamos umas voltas pelos quadros e, quando questionados sobre o que estávamos a ver, a resposta era invariavelmente esta: uma sessão de quadros…

Mas o cinema de S. Mamede tem uma história. Na sua génese esteve um propósito altruísta, que consistia no sustento do Ensino Público daqueles que, terminando o ensino Primário e não tendo posses para ir estudar para o Porto, poderiam ali prosseguir os estudos.
Quem descreve este texto é o filho da Rosinha do Abade. Quando as pessoas perguntavam a meu pai por ela, ele assim respondia com garotice: “Do Abade ela não é; é minha e só minha”. A certa altura, questionei meu pai por que razão minha mãe tinha aquele apelido. E foi da explicação dada que soube a história do meu adorado cinema.

Em 1925, o Bispo do Porto da altura destacou para S. Mamede de Infesta o pároco José de Pinho. Com ele veio uma governanta chamada Maria Albina Resende. O meu pai descrevia este padre como uma pessoa de cultura elevada para essa época. Do seu ciclo de amigos constava, por exemplo, o Marechal Gomes da Costa que o pároco visitou diversas vezes o visitou no seu exílio. Ambos tinham estado juntos na guerra de 1914 a 1918. Foi o padre José de Pinho, um excelente orador, que fez o elogio fúnebre no funeral do Marechal.       
Além da cultura e do dom da oratória, o padre José de Pinho era também uma pessoa muito compreensiva. Natural de Válega, concelho de Ovar, foi sensível ao pedido feito pela criada, no sentido de trazer da sua aldeia de Válega as suas duas irmãs que lá se encontravam, órfãs de pai, juntamente com a mãe louca. O pároco mandou-as buscar e ajudou a criá-las aceitando-as como serviçais da sua casa.

O Padre Pinho era uma figura popular. Não se inibia de entrar em qualquer lugar. Fosse num tasco ou num café, jogava cartas com qualquer pessoa. Chegou até a ver cinema ao ar livre, junto de uma escola defronte a uma barraca que vendia loiça de Barcelos. Ao ver quanta falta fazia o cinema à população, expôs a diversas pessoas um projecto para fazer uma sala de espectáculos. Porém, havia um senão: a localização do cinema. Alguém se lembrou que a família Neves tinha um armazém de vinhos que pensava talvez vir a encerrar. A família do dito prédio acedeu. Foi então criada uma comissão da qual fazia parte Marcelino Ferreira, proprietário da Quinta da Estrela.
Toda a receita que provinha do cinema revertia a favor do colégio que, tanto quando julgo saber, ficava por cima de uma loja que pertencia a Augusto das fazendas [ hoje é o café Lareira].
O colégio ou Instituto chegou a funcionar, com professores amigos do Padre Pinho, alguns dos quais trabalhavam graciosamente. Contudo, ao Bispo do Porto não agradava o movimento que em S. Mamede existia, principalmente o relacionado com forças afectas ao movimento 28 de Maio. A História descreve que depois do cerco de Lisboa e da rendição do governo na era de Gomes da Costa, deu-se uma contra revolução comandada por Óscar Carmona, na qual entrou Salazar. Baseado em cartas anónimas mandadas por certa beatice da época, dizendo mal da governanta do pároco, em 1935 o Bispo transferiu o padre José de Pinho para Espinho, afastando-o de S. Mamede. Foi um acto político, pois o governo não queria estes movimentos, e simultaneamente uma forma de o povo enxovalhar a criada Maria Albina de Resende.
Minha mãe, Maria Rosa Pereira Mendonça, vendedeira de pão, recebeu em sua casa a sua irmã. No dia seguinte, chegou a casa sem um único pão vendido.
Políticas à parte, foi assim que durante o período de 1925 a 1935, este Homem mobilizou uma aldeia que agora é uma Cidade, como Maria Mamede descreve de forma sublime nos seus excelentes versos.

Custóias, 16 de Dezembro de 2012


José Augusto Dias Mendonça