sábado, 25 de maio de 2013

O futebol cá no Burgo

Aspecto da bancada do campo da Constituição em 1925
fonte: http://museuvirtualdofutebol.blogspot.pt



O futebol deste tempo era entendido como ‘amor à camisola’. Até aos dez anos de idade, a entrada era gratuita. Ainda me lembro de, por cima dos ombros de meu pai, assistir às últimas épocas de ‘Pinga’ (Artur de Sousa era o seu verdadeiro nome), quando o futebol era jogado com bolas de três a quatro quilos e não de quatrocentos ou quinhentos gramas, como agora.

No velho campo da Constituição, num campo pelado rodeado de bancadas de madeira que estremeciam ao se vibrar com os golos do Porto, vi autênticos artistas do futebol, como o Araújo, o Correia Dias, o Soares dos Reis e o Carlos Alves, entre outros. Tive também o grato prazer de ver o Porto ganhar ao Arsenal de Londres, na altura considerado o maior clube do mundo. Mas o que quero evidenciar é que o futebol era uma festa. Não havia clubite. Pais e filhos conviviam.

Também havia os bailes tão bem retratados na canção ‘O Baile da Paróquia’, de Rui Veloso. E também havia outros eventos feitos pelas colectividades. O ‘Abaixa a Tola’, debaixo de uma ramada, que por vezes obrigava a vergar a cabeça, é um exemplo.

O que me pasma é a alegria a rodos que este povo tinha, depois de trabalhar seis dias. Agora, as pessoas são tão isoladas!

José Mendonça
in  Lembranças de um tempo já passado

Os jardins do Porto



Recordo com saudade aquela Avenida dos Aliados com os seus belos canteiros de flores, rodeados de relva, onde o meu neto, ainda bebé, corria atrás das pombas. Hoje, o que vejo é um passeio largo com um tanque naquela avenida que se destruiu.  
Os belos desenhos executados em pedrinhas pelos nossos canteiros com fama internacional (veja-se o que executaram no Brasil) deram lugar a horrendas cadeiras. Certo dia, um turista chegou ao ponto de me perguntar se lá serviam cervejas! Ao que chegamos… Tanto se fala em prol do incremento do turismo e deixa-se desfazer os belos lugares de outrora.

A Cordoaria é também disso exemplo. Os poucos bancos que lá existem não têm encosto, talvez com receio de lá se estar muito tempo. Na avenida em frente ao tribunal estão umas bancadas com umas figuras que ainda não consegui compreender o lá fazem.

A Batalha apresenta o mesmo género de cadeiras e mesas. Convido-vos a ver estes lugares e a procurarem em postais da época ou na Internet o que por cá existia.

Quanto às pedrinhas brancas e pretas aqui do Norte, são os espanhóis quem mais as procura e as compra para o embelezamento dos seus locais.

José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado


Acerca de duas importantes obras do Porto de nome Maria

Ponte D. Maria Pia 

A ponte D. Maria é uma das cinco travessias sob o rio Douro, todas elas de uma graciosidade de que os portuenses se orgulham.

A ponte D. Maria foi a primeira das cinco e foi construída para a passagem do caminho-de-ferro que, até essa altura (1877), tinha o término em Vila Nova de Gaia. Sendo a sua autoria do engenheiro francês Théophile Seyrig, foi o seu sócio Gustavo Eiffel, quem dirigiu a sua construção que se encontrava a cargo da empresa de ambos. Esta obra era a menina de seus olhos (o mesmo dizia ele à senhora com quem vivia, em Barcelos, durante o tempo que orientava a construção da ponte de Viana, a qual era também da autoria da sua empresa).

Gustavo Eiffel orgulhava-se de estar envolvido em tão bela obra de arte. E se tivermos em consideração que, mais tarde, este engenheiro ficou célebre pela construção da Torre com o seu nome, em Paris e pelas plataformas de suporte da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque, melhor perceberemos o valor que esta bela obra de arte tem e o porquê de ser reconhecida como património mundial.

Este belo monumento está a deteriorar-se e é uma pena assistirmos à degradação de uma autêntica maravilha de trabalho em ferro. Interrogo-me se uma mais cuidada orçamentação aquando da construção da Casa da Música possibilitaria a conservação da ponte D. Maria.

Relembro, a propósito, outro episódio, que se passou por volta de 1960, com um jogador de futebol peruano, famoso, chamado Cubillas. Era, nessa altura, considerado um dos melhores, senão o melhor do mundo e, nessa época, estava livre, desde se negociasse o seu passe. Contudo, o preço era tal modo proibitivo, que o Futebol Clube do Porto logo se desinteressou. Foi então que um grupo de sócios e simpatizantes aderiu a uma comissão de angariação de verbas para aquisição do jogador. Não falo nesta situação por questões futebolísticas, mas pela conversa entre dois médicos que escutei num café, na qual iam dizendo que, com aquela quantia, o seu hospital teria possibilidades de adquirir uma máquina e o respectivo laboratório em prol de tratamentos pediátricos.

Noutra mesa, dois jornalistas ouviam com atenção a conversa daqueles médicos e entabularam conversa com os mesmos. Daí surgiu a ideia de, através do jornal O Comércio do Porto, fazer-se algo semelhante ao movimento que levou à aquisição daquele jogador. O povo suplantou as expectativas e, da iniciativa, surgiu o uma máquina única no país para exame precoce no Hospital Maria Pia.

Destas considerações, tirem a ilação que mais convier. 

José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado



domingo, 19 de maio de 2013

A ribeira dos passeios, do seu duque e das cheias

Quando começava a Primavera, aos domingos, iniciavam-se excursões rio acima, numa traineira contratada aos pescadores da Afurada, que acoplavam dois batelões, um de cada lado, e assim levavam o povo, rio acima, a dançar e a cantar até Crestuma, alguns até à Régua.
Num lugar muito conhecido, apelidado de Escócia, passava-se a tarde em alegre convívio. Pelo fim da tarde dava-se o regresso. A traineira acostava à Quinta dos Frades, do lado de Gaia (lugar onde foi construída a Ponte do Freixo). Logo abaixo estava a Ponte Ferroviária D. Maria e a Ponte D. Luís. Logo a seguir estava o cais das Padeiras, lugar onde atracavam diariamente vendedoras de pão de Avintes e de broa de Avintes, pão feito à base de castanhas.
Terminava, assim, com uma alegria esfuziante o único dia de descanso que se tinha ao fim de uma semana de trabalho de quarenta e oito horas.
Deocleciano Monteiro
o "Duque da ribeira"

A Ribeira do Porto que hoje conhecemos, um belo local de turismo e lazer, também teve fidalgo. Um pescador, homem simples e modesto, que muitas pessoas resgatou do rio. Pessoas que procuravam a ponte D. Luís para se atirar ao rio.
Tratava igualmente do arranjo das flores e das luzes das alminhas em memória dos que morreram quando fugiam a caminho da Ponte das Barcas, perseguidos pelos franceses. Ensinava ainda as crianças a nadar.
O povo pôs-lhe o título de Duque da Ribeira. E não há coisa mais bonita do que a atribuição de títulos nobiliárquicos pelo povo.


Cheia do rio Douro

Quando os Invernos eram rigorosos, e raras vezes o não eram, e quando, na Régua, o rio galgava as margens e entrava pelos estabelecimentos, era dado o aviso para o Porto: o Douro iria galgar as margens. Passadas umas tantas horas do aviso, era ver os comerciantes e moradores das duas margens retirar os seus haveres para os pisos superiores ou para casa de amigos. A Ribeira ficava deserta, com os barcos a reforçar às margens suas amarras. As cargas e descargas paravam. Alguns barcos de grande tonelagem e enormes mastros ancoravam em pleno rio, pois o cais estava cheio. As carvoeiras já não subiam a Rampa das Corticeiras. Os carros de bois, as carroças puxadas a cavalo e aquelas arrastadas pela força humana subiam a Rua de S. João.

Recordo-me que, certa vez, a cheia fez-se acompanhar de ventos fortes. O caudal e a corrente tinham uma força tal que se pensou que as águas tocariam o tabuleiro inferior da ponte, tendo os bombeiros aconselhado a reforçar as amarras dos barcos fundeados e a abandonar as embarcações. Todas as tripulações o fizeram, excepto um comandante. A cheia arrastou os barcos de grande porte pela barra fora até ao mar, deixando-os à deriva em pleno oceano. Um dos navios encalhou num pilar da Ponte da Arrábida. Quando se recuperou as embarcações após o tempo amainar, encontrou-se o Comandante que se recusara a abandonar o seu barco, sem vida.


José Mendonça
in Lembranças de um tempo já pessado

A ribeira do Porto e o homem que conhecendo meio mundo a escolheu para seu repouso

O momento do lançamento de bordo do navio-motor SEAMEW d
as cinzas do corpo do seu antigo comandante, 
Captain John W. Cowie, às águas da barra do Douro em 1958
(http://naviosavista.blogspot.pt) 

Conheci aquela Ribeira das cheias, dos barcos rabelos que desciam o Douro, descarregando as pipas de vinho para as caves no cais do lado de Gaia. O cais do lado do Porto recebia os barcos rabelos que desciam o rio desde o Alto Douro carregados de carvão, lenha e caruma, transportando, de volta, pipas vazias e peixe (em especial bacalhau) e tudo mais que fosse preciso.
A Ribeira turística de hoje já foi o local de trabalho de imensas pessoas que aos ombros descarregavam, pelo meio de carros, haveres dos muitos barcos que estavam atracados nos dois cais. Naquele imenso ‘formigueiro’ humano percorriam carregados homens e mulheres aquele infindável calvário, desde o barco à ponte de baixo, para depois subirem a íngreme Rampa das Corticeiras.

Aquele lugar enfeitiçava tanto que se dizia pelas tabernas locais que, ao lá passar entre muitos navios, certo Comandante, conhecedor do mundo, disse que gostaria de, após a sua morte, ser cremado e que as suas cinzas fossem lançadas ao Rio Douro. Para que o seu desejo pudesse ser cumprido, a família deste marinheiro da Escócia deslocou-se à Cidade do Porto, participando o seu falecimento e fazendo a vontade que o familiar fizera em vida. As cinzas deste amante do rio Douro e da Cidade do Porto foram transportadas rio abaixo pelo Duque da Ribeira. Acompanhado por um cortejo de embarcações lançou as cinzas junto à entrada da Barra, no lugar da Meia Laranja, onde foi colocada uma lápide, lembrando o homem que, tendo visto grande parte do mundo, desejou deixar algo de seu no rio e nas gentes que sempre amou.

Placa de bronze comemorativa da homenagem ao Captain John W. Cowie, 
que se pode ver no dique da Meia Laranja, junto da barra do Douro
(http://naviosavista.blogspot.pt) 

José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

O palácio de Cristal e a história do menino de ouro


Antigo palácio de Cristal no Porto


O Palácio de Cristal que conheci era um imponente edifício envidraçado semelhante ao célebre Palace, em Londres, com as suas maravilhosas estátuas das quatro estações do ano que, felizmente ainda hoje se conservam. A nave e o edifício em si eram de uma beleza extrema. A sua fachada central tinha dois torreões em cada extremo e, no centro do mesmo, havia um grande arco composto por belos vidros. Convido-vos a ver os postais dessa época e a constatar a obra que derrubou para se fazer um edifício destinado a albergar um campeonato mundial de hóquei em patins. Não me digam que o lá se gastou não daria para conservar aquele edifício.

Em certa época apareceu uma novidade trazida por um senhor chamado Belchior, a chamada viagem em balão, a qual implicava o investimento de uma avultada quantia. Certa vez, um adolescente pediu aos pais que o deixassem subir no balão. Os pais anuíram, mas o aparelho perdeu-se e, tanto o homem que o dirigia, como o seu passageiro, nunca mais foram vistos. Os pais, desolados e riquíssimos, chegaram a oferecer o peso de seu filho em ouro a quem o encontrasse. Construíram, inclusive, na sua mansão em Vila Nova de Gaia, um torreão com um facho sempre aceso, para que seu filho perdido reconhecesse a casa de seus pais.
Esta casa ainda hoje existe, na antiga estrada entre Vila Nova de Gaia e Espinho.


José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

sábado, 11 de maio de 2013

A inauguração de uma ponte sobre o Douro

Construção da ponte da Arrábida


Por volta das décadas cinquenta e sessenta, quando a Câmara Municipal do Porto solicitou diversos projectos com vista a uma nova travessia sobre o Rio Douro no lugar do Monte da Arrábida, entre o Porto e Vila Nova de Gaia, de numerosas propostas uma se destacou pelo carácter inovador e por ser mais económica. O seu responsável – Edgar Cardoso - era um jovem professor engenheiro do laboratório de engenharia civil, em Lisboa.

A obra a executar por esse engenheiro propunha uma nova técnica muito avançada, talvez única. Tal audácia levou engenheiros nacionais e estrangeiros a duvidar da sua exequibilidade. Apesar disso, a obra foi entregue àquele técnico. A concepção da ponte começaria pela construção dos pilares em ambas as margens, os quais iriam ser o suporte das partes que iriam alçar do leito do rio um arco enorme, em betão, pousado em cima de duas enormes barcaças. Para içar, fechar e acoplar o arco (considerado, na época, o maior e mais pesado da Europa) seriam utilizados potentes macacos hidráulicos. Questionavam alguns se os pilares suportariam tal peso ou se, pelo contrário, os macacos cederiam nem que fosse milímetros, comprometendo o fecho da ponte.

Técnicos de todo o mundo trataram de ver quando seria anunciado o dia da operação da acoplagem e, na véspera, os hotéis da cidade esgotaram as marcações para que se assistisse à queda da ponte. As margens do rio encheram-se de pessoas. À hora programada, deu-se a chegada rio abaixo de dois batelões com o arco que iria fechar a ponte pousado em ambos. Assistiu-se depois à lenta elevação daquele enorme arco e ao seu encaixe, conforme os cálculos ao milímetro, no vão vazio da ponte.

Foi então que eu, e os demais, nos orgulhámos de ver um português a mostrar ao mundo uma nova técnica de engenharia. 

É também a este engenheiro que se deve a remodelação da Ponte D. Luís para passagem do metro, e é igualmente de sua autoria a ponte ferroviária de S. João, bem como dezenas de obras por esse mundo fora.


Apesar de não ter conhecimento da existência de uma rua com o seu nome, por este célebre projectista de pontes falam as suas obras.


José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

O sonho do Engenheiro Ezequiel de Campos

Engº Ezequiel de Campos

Junto do Mosteiro de Leça do Balio existe uma quinta chamada Quinta do Mosteiro. Nela morava, por volta de 1940, o engenheiro Ezequiel de Campos. Quem o conhecia dizia que era um sonhador. Não é que, dentro do seu núcleo de amigos, o homem dizia que, quando o Governo resolvesse domar o rio Douro através de represas, o rio deixaria de haver cheias e ficaria navegável?

Certas pessoas diziam que não viam que isso pudesse fazer-se e, olhando que de Barca de Alva ao Porto existe um desnível de umas centenas largas de metros, e a existirem as ditas represas, os barcos não poderiam navegar, pelo que o que o homem sonhava não era possível, Passados cinquenta e tal anos, a obra aí está. Exemplo disso é a barragem de Crestuma-Lever, com cerca de quarenta metros de altura, considerada a maior da Europa, com reclusa feita para passagem de barcos. O orgulho que teria este engenheiro ao ver este rio movimentado. E a tristeza que teria ao ver a sua quinta retalhada por um conjunto de estradas sobrepostas umas sobre as outras. Sonho realizado, mas a sua bonita quinta foi sacrificada ao progresso.



José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

As barreiras da estrada da Circunvalação

Edifício administrativo das "barreiras"

Em 1943, o povo chamava à estrada da Circunvalação (EN 12 que circula em toda a volta do Porto) Barreiras. E com razão o fazia, pois esta infraestrutura consistia em duas estradas paralelas, com um fosso fundo e largo, para que o povo não passasse de uma para a outra. Para este efeito, teria de recorrer às entradas existentes (Amial, Monte dos Burgos, Areosa, Rio Tinto, Freixo, Vilarinha e Castelo do Queijo). Para entrar na cidade pela parte sul existia a Ponte de D. Luís.


Para se entrar nesta cintura e vender na cidade, tinha de se pagar um imposto. Dentro dela não se podia andar descalço. Ainda hoje se pode ver as casas onde dormiam os guardas fiscais nos sítios atrás mencionados.
Pagar taxa para entrar na cidade, para vender hortaliças no Bolhão hortaliças, para arrendar o lugar de venda … Muros e certas leis sempre me deixaram confuso.

José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

Dr. Vilar Machado, médico dos ricos e dos pobres


Dr. Vilar Machado


Li algures esta designação e afirmo, com toda a admiração de quem precisou dos seus préstimos, quanto é certa a designação Médico dos ricos e dos pobres. Além do amor que nutria pelos outros, o Doutor Vilar Machado era agradável e tinha simpatia a rodo e, com toda gente, era modesto, amigavelmente colocava o seu braço no nosso e assim seguia connosco, sempre com a amizade que a todos habituou e que por todos era reconhecida. Não distinguia os seus doentes fosse qual fosse a sua classe social e a sua modéstia era de tal ordem que um familiar meu andou anos a fio a ser consultado em sua casa, nunca tido ele aceitado quaisquer honorários. A paciente faleceu com 94 anos, julgando que ele era um médico da junta.

O Doutor Vilar Machado tinha para com os Mamedenses uma confiança tal que, onde quer que o seu carro estivesse estacionado, era certo e sabido que as chaves de seu carro lá estariam também. Sempre que o alertavam para os perigos de tal prática, sempre respondia que lidava com gente séria. Certa vez, quando se dirigia para o carro depois de estar numa roda de amigos, ao não encontrar a viatura seguiu descontraído para casa, como se nada tivesse acontecido. Pela manhã foram pôr o carro à porta sem nada lhe faltar. Pois este Homem continuou, como sempre, com os mesmos hábitos, sempre com o seu carro vermelho e com os mesmos costumes.
Por outra ocasião, ao consultar determinada paciente, esta chamou-lhe a atenção para a sujidade do carro. Resposta pronta do médico: “Mas terei eu comprado o carro para ele me servir, ou para ser eu a servi-lo?”.

Era assim o Doutor Vilar Machado. O Homem que brincava, mas que sofria quando se via impotente para travar a morte de alguém.

Mais tarde vi sua esposa, apoiante incondicional de todos os actos do Doutor Vilar Machado, ao serviço do voluntariado no IPO. Já diz o povo que por trás de um grande valor está outro.


José Mendonça
in  Lembranças de um tempo já passado

sábado, 4 de maio de 2013

Um Juiz que condenava as injustiças de certas condenações...


Quando lhe cabia julgar alguém que era preso por andar descalço (em 1940 era proibido andar sem calçado), o senhor doutor juiz António Quintela optava pela absolvição. Justificava-o dizendo que quem não tinha dinheiro para comer também não o tinha para se calçar.

Quando alguns médicos chamaram a atenção para o perigo de transmissão de doenças que andar sem nada nos pés podia representar, mandou fazer em madeira o desenho da parte de baixo dos sapatos que com uma tira de couro por cima se segurava aos pés. Afirmava então aos réus que, se calçados daquela maneira, nada lhes aconteceria. Àqueles que provassem que não podiam adquirir este molde, António Quintela custeava-o.

Certa vez, apareceu-lhe o julgamento de uma casa que vendia vinhos, onde se reunia um grupo de pessoas humildes, de fracas posses que, depois do encerramento da casa à noite, ali se juntava para jogar cartas. Logo rotularam a casa de ‘casino’. Depois de ouvir os réus, o juiz António Quintela concluiu que o que se ganhava revertia para a compra de roupa para que as mulheres dos sócios daquela colectividade fizessem vestidos para as crianças. O grupo chamava-se Bem Fazer. Enternecido, disse não ver caso para julgamento e inscreveu-se na colectividade. Assim nasceram imensos Bem Fazer  por essas terras fora.

padre Américo

Padre Américo

Esse Homem que começou por arrebatar crianças das ruas com entusiasmo, convencendo-as a deixar a vida que levavam e acolhendo-as com o consentimento dos pais. Assim fundou as Casas do Gaiato, que se fizeram por essas terras fora. As crianças não iam contrariadas, mas sim sonhando com a vida mais útil de que aquele sacerdote lhes falava. Lá aprenderam e de lá saíram carpinteiros, electricistas, tipógrafos ou agricultores (alguns comigo trabalharam). Os serviços diários estimulavam ainda o gosto pela cultura através do teatro. Chegaram ao ponto de dar espectáculos no Coliseu, pelo menos uma vez por ano, e de editar um jornal mensal onde todos tinham de contribuir com as suas histórias, o seu dia a dia e as suas opiniões. As tiragens e os textos tinham agradável procura.

Sem subsídios de espécie alguma, este padre recorria ao que recolhia nos intervalos das sessões de cinema, pois entendia que quem tinha dinheiro para ver um espectáculo não o deixaria ir com os bolsos vazios.
Na quinta de sua família, em S. Miguel de Ceie, criou campos de lavoura para sustento dos que lá viviam.

Este Homem, que em vida tudo deu pelos seus rapazes (Não há maus rapazes, dizia amiúde) e nada quis para sim, mas apenas para a sua obra, faleceu num desastre de automóvel, conduzido por um dos seus rapazes. O seu funeral saiu da Igreja da Trindade e seguiu para a quinta dos Rapazes. Nesse dia, vi o Porto vestido de luto. Uma cidade inteira chorou por um padre cujo símbolo era o de sacerdote de batina e uma criança pela mão. Milhares de pessoas concentradas no funeral de alguém simples, numa época em que não existiam telemóveis, Internet e em que os jornais eram pouco acessíveis.


José Mendonça 
in Lembranças de um tempo já passado

padre Grilo

Padre Grilo

Tendo dado os seus primeiros passos no exercício pastoral em Matosinhos, o padre Grilo apercebeu-se da existência de algumas crianças que da rua faziam a sua casa, tanto de dia como de noite. Convenceu os pescadores a dar-lhe uma parte do que pescavam e recolhia donativos dos sermões que fazia. Ouvi, numa freguesia do Concelho, ele afirmar para quem o ouvia: “Olhai as pessoas que vejo com grossos e pesados cordões com o valor deles. Davam-me jeito para o sustento de cerca de uma trintena de crianças”. Hoje a obra está com a pujança que está. Já de lá saíram e se formaram crianças tiradas à rua sem outro subsídio a não ser o do povo. Aquelas palavras ainda hoje me soam aos ouvidos.~


José Mendonça 
in Lembranças de um tempo já passado

MOJAF


Na década de cinquenta ou sessenta apareceu um padre em S. Mamede de Infesta oriundo de Coimbra com a incumbência de ajudar o padre da freguesia. Dizia a missa das sete da manhã aos domingos e, depois de travar conhecimento com certas pessoas da minha terra, apercebeu-se da precariedade das condições de vida de muitos. Juntou-se, então, a certas pessoas que não eram lá muito da confiança do padre e com elas fez uma comissão. A estes se juntou um arquitecto que elaborou a planta de casas para os mais carenciados. Foi negociada com um lavrador a cedência de terreno para a construção de doze fogos e a procura de materiais e de dinheiro. O movimento ganhou tal extensão que já incluía ateus, protestantes e outros credos. O povo abraçou a ideia. Houve quem se tenha oferecido para trabalhar ao domingo, único dia de descanso. O padre mandou colocar à porta uma giga para donativos durante a missa, que ao padre nada rendia, mas que fez com que se começasse a erguer a obra com que se sonhava. 

MOJAF - S. Mamede de Infesta
fotografia retirada de: http://criarlacos-ex-dominicanos.blogspot.pt/2010/02/quem-se-recorda-destas-imagens.htm

Era ver rapazes e raparigas, ricos e pobres trabalhando lado a lado a fazer traços de massa e a fazê-los chegar aos artistas que alegremente trabalhavam. Não faltavam pessoas a trabalhar e mirones que gostavam de observar em especial as meninas. O nosso homem uma vez mais recorreu ao sistema da giga, pelo que quem vinha trabalhar também devia contribuir. E assim nasceu a Mojaf, o movimento por diversas terras (casas para pobres).

Este homem teve de fugir à polícia política. Refugiou-se em França. Depois da revolução do Vinte e Cinco de Abril apareceu na secretaria do Ministério da Saúde, já depois de ter renunciado à igreja católica. A ele se deve aquele grande infantário junto do posto da Caixa em S. Mamede de infesta (muito antes de aparecer a Lei Nacional de Saúde).

José Mendonça 
in Lembranças de um tempo já passado