sábado, 27 de abril de 2013

Estimando e poupando o que tínhamos


O que tínhamos para calçar eram uns simples sapatos em pano que apelidávamos de sapatilhas feitas com um pano fraco em cor azul ou branca. Quando a unha do dedo do pé crescia demasiado e rompia o fraco pano com que eram feitas as sapatilhas, era certo e sabido que, no final do dia, tínhamos como castigo algumas bofetadas e a ordem de andarmos descalços até haver dinheiro para outras. Hoje, fico pasmado quando ouço um puto pedir ténis de marca quando os que tínhamos na altura, com aqueles trapos, já nos punha felizes. Tínhamos igualmente dois pares de calças de ganga, um dos quais guardado para os Domingos e que raras vezes era lavado, para não perder aquela cor azul forte com que vinha revestido. Quanto ao outro par, logo após a primeira lavagem ficava desbotado. Com as calças assim e com alguns rasgos, pode dizer-se que andávamos na moda de agora, pelo que não vejo razão para sermos castigados como éramos.
Assim se vivia na época da Segunda Guerra. Quantos morreram de fome, de frio e de tuberculose. Além da alimentação, quase tudo nos faltava. Havia umas senhas que mal davam para meio mês. Hoje vejo com imensa mágoa os contentores repletos de tudo que naquela altura tanta falta fazia.

Quando os ténis que nos davam se rompiam era certo e sabido que as solas em borracha eram aproveitadas, novamente cobertas com ganga na grorinha das sabatinas; os nossos ténis de marca.
Assim era com o resto. As camisas, por exemplo. Quando os colarinhos se rompiam, a parte mais gasta era virada para dentro e, nalguns casos, eram postiços. 

José Mendonça
in Lembranças de tempos já passados

A adolescência (precoce) na década de 1940



Após a escola primária, começava um novo ciclo nas nossas vidas. A maioria ia trabalhar. Eu fui para rapaz de carniceiro, serviço que se resumia a receber encomendas de carne, que teriam sido entregues em cestas enormes e pesadas transportadas às costas. Eu arranjei emprego a cerca de cinco quilómetros de casa e, como outros, andava duas horas para ir e outras duas de regresso enquanto eléctricos passavam vazios, pois, do que ganhávamos, mal sobrava dinheiro para o custo do bilhete.

Era assim a vida dos mais desfavorecidos, que eram muitos. Bastava observar o movimento das pessoas a caminho do trabalho. Nas ruas cruzavam-se umas com as outras e conviviam a caminho do trabalho, tanto de dia como de noite. Não esqueço tantas mães que, depois de terem terminado o trabalho, ainda tinham pela frente os afazeres domésticos, marido e filhos, numa época em que não havia frigoríficos, fogões a gás, arcas congeladoras, máquinas de lavar e secar ou micro-ondas. Que força possuíam e que alegria teriam ao, após um dia de trabalho, dar um sorriso aos filhos e restantes familiares. Vi-o nos lábios de minha mãe e de imensas mães com um ou mais filhos. Isto numa altura em que, para a comida não se estragar, se amarrava panelas e tachos no fundo de um poço ou dentro de vasilhas com água.

Aos estudiosos passo a dizer que a semana de trabalho tinha uma duração de quarenta e oito horas. Uns anos mais tarde passou para quarenta e cinco, depois quarenta e duas e depois para quarenta. A licença de casamento era de três dias, depois uma semana e hoje é de um mês. As férias começaram por prever um período de três dias, passando depois para uma semana, duas semanas e, actualmente, cerca de um mês. Por tudo isso eu passei. Meu pai dizia que no tempo dele era pior.

Lembro este viver porque com a vida exaustiva que se tinha na época (felizmente já ultrapassada), o homem não dividia os trabalhos domésticos como hoje felizmente vejo fazer. Mas, aos domingos, levantavam-se cedo (sensivelmente à hora a que hoje muitos chegam das discotecas) para limpar as suas casas e a pé percorriam quilómetros, a caminho das festas como a de Santa Rita, Senhora da Hora e Senhor da Pedra, entre outras. Pelas minhas contas, do Porto a Miramar serão mais de dez quilómetros, que eram feitos com muita alegria.


Embora entenda que o tempo que se vive hoje é diferente para melhor, acho-o menos humano e, perdoem-me os que estão lendo estas linhas, vejo-o mais apressado. Quer-se ter tudo muito depressa, nem que para isso se tenha de atropelar alguém. Por outras palavras, não se espera; exige-se.



José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

A escola onde aprendi as primeiras letras



A minha escola era um edifício antigo com cerca de dez salas e um grande campo que além de constituir um espaço de aula, facultava batatas, hortaliças e o mais que fosse preciso. Hoje em dia é onde se localiza o salão paroquial de S. Mamede de Infesta.

A cantina era abastecida com o que o campo nos dava e que belos almoços lá tinham, sempre feitos pela D. Deolinda Martins. Havia lugar para ricos e pobres. Só tínhamos de levar o pão. Além de cozinhar, a D. Deolinda Martins fazia a limpeza das dez salas e ainda tinha tempo de dar um ou dois pares de sapatadas ou de nos pôr a lavar a louça, ‘castigos’ que, passados todos estes anos, só dou por bem empregues, pois ajudaram-me a ser o homem que sou.

Cada sala tinha cerca de vinte e cinco alunos, num total de cerca de duzentos e cinquenta, uns de manhã e outros de tarde. As matérias que se dava na terceira e quarta classes eram o português, a geografia, a aritmética e as ciências do corpo humano. E olhem que tinha de se conhecer os rios e seus afluentes, os caminhos-de-ferro e as suas estações.

Os professores não eram assim tão duros como por aí se diz. Queriam, sim, educação, trabalho e atenção. E nós também assim o entendíamos. Não havia facas entre nós, mas sim camaradagem. Caso contrário, nossos pais completavam o que faltava com alguns açoites.

Os professores complementavam-se e as faltas eram mínimas. O meu professor chamava-se Rodrigo. Passados anos, mal me viu em pleno átrio da estação de S. Bento a caminho de Mafra, onde cumpria a vida militar, abraçou-se a mim e, num imenso calor humano, apresentou-me às pessoas, dizendo-lhes que o acompanhava o orgulho de me ter ensinado as primeiras letras e de ter sido meu professor na primária e no primeiro ciclo. Este homem amava os seus alunos e tinha orgulho neles.

Certa vez, ao queixar-se que a cana que tinha não atingia o lugar que queria, alguém ofereceu-se para lhe arranjar uma cana maior. E assim o fez. Tempos imensos passaram, imensas tropelias sucederam e não é que, por uma pequena asneira, quem ofereceu a cana foi quem a estreou?!

Era com pessoas desta têmpera que aprendíamos a ter respeito mútuo.

José Mendonça
in  Lembranças de um tempo já passado


Homens que conheci que, tal qual autênticos escultores, esculpiam em pedra


Alguns mal sabiam ler e escrever era ver sair daquelas mãos coisas tão belas que ainda hoje me encantam e com as ferramentas que existiam naquela época. 

Pela amostra desenhada num papel, trabalhavam na pedra autênticas obras-primas. É o caso de edifícios como a estação de S. Bento, o teatro S. João e tantos mais de que me lembro. Estes artistas que fui conhecendo arrastavam pedras de um lugar para o outro cantando às pedras as cantilenas que a elas se referiam, entoando "oupa pedrinha, anda pedrinha, anda". Era assim que se juntava pedra sobre pedra. Os escultores em pedra da minha terra. 

Alguns eu conheci e aqui lhes presto a minha homenagem.

No tempo da II Guerra Mundial em S. Mamede de Infesta

Estátua do Dr. Germano Sousa  Vieira,
erigida pela população de Gueifâes
em frente à Avenida com o seu nome
  

A Humanidade em favor de outros 

De entre muitas pessoas que conheci, destaco um médico parteiro que, quando chamado a assistir algum paciente, além de nada cobrar pela consulta, ainda deixava dinheiro para a compra de remédios.

Certa vez, a esposa deparou com a arca do seu enxoval, outrora enorme, completamente vazia. O médico levara tudo o que tinha para os doentes mais necessitados.
Noutra altura, um doente queixou-se da barriga. O médico receitou chá de silvas, pois não conhecia cabras com disenteria.

Homem bom, simples e humilde, o Dr. Germano Vieira deslocava-se a cavalo. Um verdadeiro João Semana do século XX. No final da sua carreira, andava num automóvel antigo, que pomposamente dizia ser material de guerra, com muitos cavalos.
A ti um grande bem-haja, estejas onde estiveres, pelo que fizeste pelos pobres da terra.

Nesta altura muito se sofria para obter pão, azeite, sabão, açúcar ou carvão. Chegava-se ao ponto famílias inteiras se revezarem com mantas para passar a noite. Hoje vejo filas imensas aguardar tal como eu naquele tempo. Só que agora é para ver um simples jogo de futebol ou outro qualquer espectáculo ou até para pagar impostos (nem todos precisam de os deixar para o fim).

Voltando às bichas da minha infância, impressiona-me ver pão nos contentores e milhentas coisas mais que, nessa época, matariam a fome. Naquela época, mal acabávamos o ensino escolar, o caminho a seguir era o trabalho.

Outros tempos (felizmente)...


José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

sábado, 20 de abril de 2013

Cartas ao meu amigo João: figuras da nossa terra II.


Sabes João: é com imensa pena que te informo que o Botelho também nos deixou. Um amigo a quem a natureza deu uma perna inteira e metade de outra, como, em jeito de humor negro, dizia.

Botelho afirmava ser herdeiro do Toninho Marques que, infelizmente, estava na mesma situação e que era uma figura de classe monetária superior à media, mas que o povo admirava pela sua enorme modéstia e invulgar habilidade, não só a jogar bilhar com a cana de um foguete, mas também como guitarrista (chegou, aliás, a tocar na rádio).

Pois é, João, pois além de nós, poucos saberiam que aquele Botelho que andava a maior parte do tempo ébrio, sofria imenso, como nos confessou. Carregava um enorme sentimento de culpa pelo facto de sua mãe ter falecido após o parto e, indirectamente, ter sido dado como causador da morte. Para desviar a conversa, com os olhos rasos de lágrimas, dizia que era um felizardo, pois, da casa dele para o Cantinho onde se perdia, tinha a rua cheia de água e assim tinha uma piscina, coisa que só os ricos tinham prazer de ter.

Aqui há uns tempos atrás, várias pessoas comoveram-se pela sua situação e levaram-no para o centro da terceira idade. Amigos e conhecidos davam-lhe algumas moedas para o tabaco. Não é que, certa vez, o vejo chegar-se à minha beira e quando me preparava para lhe algumas moedas ele nada de mim quis e, com imensa satisfação, me deu a grata notícia que tinha feito uma desintoxicação e queria, à viva força, recusar a minha oferta. A satisfação era nele tão grande que nos abraçamos comovidos. Passado pouco tempo soube que tinha falecido. Sabes, João, a gente vai passando pela vida dizendo que ela anda devagar, mas passa-se exactamente o contrário; nós é que andamos depressa e ao Botelho a vida só tarde lhe deu uns míseros sorrisos. 

José Mendonça

in Lembranças de um tempo já passado

Cartas ao meu amigo João: figuras da nossa terra I.


Olha João: ainda há bem pouco tempo dei comigo a observar a nossa estação de caminhos-de-ferro e lembrei-me daqueles pequeninos canteiros de flores que chegaram a ganhar prémios internacionais. Nada disso existe agora, mas ainda lá estão - por quanto tempo não sei - aqueles lindos azulejos, cheios de pó, que o escritor Hélder Pacheco, numa de suas obras, classifica como dos mais bonitos que conhece fora da cidade do Porto.

Lembrei-me das imensas viagens que de comboio fazíamos até Senhora da Hora e Matosinhos, viagens essas que acabaram em pó e cinza, como está escrito por cima da porta do cemitério, onde, além de ti, está o Zeca da farmácia, que não chegou a terminar a história do seu Infesta (dizem que a família guarda os seus apontamentos religiosamente) e o Joaquim da farmácia, que atendia toda a gente, nem que para isso tivesse de se levantar de madrugada.

Lembras-te daquela história daquele embriagado que, ao passar pela farmácia às três horas da madrugada, reparou na publicidade de um chá com o nome de ‘xamate’ e que tocou à campainha para perguntar o nome do chá que estava na montra? Pois o Joaquim perdeu a calma e, zangado, respondeu “É o raio que o parta !” Ao que o bêbado responde: "pois olhe que ninguém diria, pois de tal forma está mal escrito!"

Quando questionado sobre o assunto, o Joaquim apenas sorria, motivo pelo qual nunca se soube onde acabava a anedota e começava a verdade. Era assim o Quim da Farmácia Lino, de S. Mamede. Como se pode esquecer um Homem (assim mesmo: com um "H") sempre pronto a atender alguém vinte e quatro horas por dia?

Lembras-te, amigo, das corridas que fazíamos, com as sapatilhas a desfazer-se, naquela rua comprida que terminava numa descida onde passava o caminho-de-ferro, com uma passagem sem guarda e com uma tabuleta em betão que rezava assim pare, escute e olhe? A rua chamava-se Avenida Marechal Gomes da Costa e tu, muitas vezes, perguntavas porque se chamava avenida e não rua, visto, de um lado, ter meia dúzia de casas e, do outro, o cemitério (cujo metro quadrado, segundo dizem, é três ou quatro vezes mais caro do que aquele que é necessário para construir uma casa).

Ora no final dessa mesma rua, junto à linha-férrea, fez-se agora uma ponte que termina do outro lado da linha. Na minha opinião, devia lá colocar-se a tabuleta Pare, escute e olhe… os campos, invadidos por uma construção ininterrupta ao longo de sessenta anos de prédios.


José Mendonça

in Lembranças de um tempo já passado

Cartas ao meu amigo João: A nossa escola.


À dias deixei-me arrastar pelos lugares que nos viram crescer em S. Mamede, João. 

Sem dar por isso, dei comigo a observar o sítio onde outrora se situava a nossa escola e onde, hoje, existe um salão paroquial. Por longos momentos, deixei-me embalar nos meus pensamentos, recordando as tropelias que lá fazíamos, de barriga vazia ou, como dizíamos, ‘colada às costas’ e os célebres ‘prémios’, nome dado pelo professor a dois bolos dados com uma régua de cinco buracos a todos que chegassem atrasados.

Lembro que, certo dia, entraste mais tarde e disseste: 
- "Senhor Professor, venho de fazer uma pergunta à minha mãe à qual me respondeu em condições de que nada concordo”. 
Replicou o Senhor Rodrigo com o ‘prémio’. E tu prosseguiste: 
- "Perguntei à minha mãe porque é que a nossa terra se chama S. Mamede de Infesta e ela me respondeu que se calhar é por estar em festa”

Todos se riram e eis senão quando se ouviu o vozeirão do professor mandar-nos calar. Veio então a resposta: “Pelo que julgo saber, Infesta é uma elevação de terreno, vulgarmente denominada por monte. Quanto a S. Mamede, nada sei de santos, mas dizem-me que a igreja lá dentro tem uma talha dourada bem trabalhada, assim como belas imagens, uma julgo que trabalhada pelo Soares dos Reis. Aconselho-vos a darem um passeio pelo que tendes na vossa terra”.   

Prosseguiu contando a história da Igreja de S. Mamede de Infesta: “Certos documentos dizem que, em certa época, um homem de vossa terra foi novo para o Brasil, onde fez considerável fortuna. Ao fim de uns tantos anos, lembrando-se que lá longe onde tinha nascido havia uma igreja pequenina para seu povo, comprometeu-se a enviar parte de sua fortuna para a construção de uma igreja, essa sim, tão grande e bonita como a do Senhor de Matosinhos, com duas torres e o prolongamento de uma rua com a largura igual ao templo, que iria custear integralmente. Assim, escolheu um conjunto pessoas da sua confiança a quem incumbiu a tarefa de observar a sua construção. E não é que a comissão entendeu que a construção de duas torres era um descalabro? Porque não construir uma só? E assim o fizeram, sem dar conhecimento ao respectivo mecenas, que continuava a custear a obra com que sempre sonhara para a terra que o viu nascer. Entretanto, essa mesma comissão propôs ao governo do Reino de então a atribuição do título de Conde de S. Mamede ao imigrante que deixou os seus. Mas o pior estava para vir: quando, mediante convite para a inauguração do edifício, e acompanhado pelas mais diversas entidades, o Conde deparou com uma igreja de uma só torre ao entrar na avenida, imediatamente mandou dar meia volta ao coche e, recusando-se terminantemente a lá entrar, voltou para o Brasil, de onde não mais deu notícias”.

Por teres entrado mais tarde na aula, o professor deu-nos uma lição de valores que nada tinha da matéria desse dia, e mais, aconselhou-nos a valorizar os lugares em que nascemos e vivemos. Ainda nessa aula, o professor desafiou-nos a decifrar o que estava escrito em letras romanas por cima do portão do cemitério. Chegamos ao ponto de ir à Junta da Freguesia e até ao Senhor Padre, para ele darmos resposta ao desafio: "Ontem carne, hoje pó, amanhã nada – 1775".

Desta lição de valores da nossa terra vista à distância (já lá vão sessenta e cinco anos, João), não posso deixar de destacar o propósito de um professor forasteiro de incutir junto dos seus alunos o gosto pelo que os rodeava e a recomendação de conservação pelos valores culturais inerentes.

Quanto ao Cruzeiro com o Cristo Crucificado que vimos junto da antiga cabina de electricidade, informo-te que já foi mudado duas vezes e que, presentemente, está no adro da Igreja, de costas para o templo, observando  a avenida do Conde, com prédios altos e baixos, duas faixas de trânsito, mediadas por  um canteiro de flores. Se Cristo falasse…

É o progresso, meu amigo, bem sei, mas é com tristeza que vejo os lugares dos nossos sonhos desaparecer.

José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

Cartas ao meu amigo João: A nossa terra


João, aonde quer que estejas, se vires a nossa Terra não a conheces. Das quintas que eram o encanto dos amigos que por cá andam conta-se pouco mais do que os dedos das duas mãos. Às vezes, alguns de nós juntam-se num café a que pomposamente damos o nome de Sindicato (pensas, e bem, “mas quando lá estive havia o sindicato e descontei, mas não se podia reunir…” mas isso é outra história).

Vamos falar dos lugares dos nossos sonhos. Olha: lembras-te daqueles irmãos que faziam férias numa daquelas quintas, um dos quais jogou contigo futebol e tu dizias "a vida está para estes dois?" Pois fica sabendo que hoje um é uma voz forte do futebol cá do Burgo (que, de uma forma irónica vai mandando recados para Lisboa, que até eu gostava de dizer, mas não só de futebol) e o outro uma figura notável no campo da medicina.

A tua, nossa, terra tornou-se cosmopolita e os nossos costumes e lugares foram desaparecendo. Já não se ouve a sirene dos bombeiros e os sinos da igreja a tocar para indicarem que é meio-dia. E por falar em sinos, lembras-te que não tínhamos autorização para entrar em casa depois das Santíssimas Trindades tocadas pelo sino da Igreja. E lembras-te, certo dia, depois de vermos apenas duas beatas dentro da Igreja, de termos subido ao cimo da torre e embrulhado em trapos os badalos dos sinos? E que, naquele dia, a nossa terra não ouviu os sinos tocar as Santíssimas Trindades por causa de uns garotos que se os pais soubessem quem eram não se livrariam de um concerto de porrada e que, assim, entramos mais tarde do que o costume?

E por falar em concerto, nem vais acreditar: hoje fazem-se bichas para assistir a espectáculos de música. Tal como nós fazíamos para trazer o que precisávamos para termos alguma coisa para entreter a fome em que vivíamos. Naquela altura, amigo, as bichas eram para alimentar. Hoje, amigo, é para divertir. Chega-se ao cúmulo de se passar dias e noites para ver um espectáculo de uma ou duas horas e, João, não vejo o mesmo para a procura de um emprego.

Ainda me lembro de te ver, amigo, nos degraus do coreto da nossa terra quando, com as lágrimas nos olhos, me dizias naquele dia invernoso, que o mestre e patrão te disse que, por estar a chover, não havia trabalho. Era o segundo dia que o mestre vos mandava embora e nada ganhavam. E além de nada teres no fim-de-semana, teus pais nada recebiam. Sofrias por ti e por eles. Nasceste uns anos mais cedo, pois hoje serias um fidalgo e o teu ofício de construção civil, uma arte (nem sempre devidamente reconhecida). Nada te faltaria e não morrerias tão novo de tuberculose. Tu ajudaste a começar a erguer o Hospital de S. João. Morreste antes da descoberta do cientista britânico que, ao deixar por esquecimento no laboratório determinado produto, deu com ele estragado ao outro dia e, ao examinar os fungos, reconheceu determinadas matérias próprias, tendo daí nascido o essencial para a descoberta da Penicilina.


José Mendonça
in Lembranças de um tempo já passado

domingo, 14 de abril de 2013

S. Mamede de Infesta

S. Mamede de Infesta

Nasci em S. Mamede de Infesta e hoje, passados estes anos todos, vejo com saudade a diferença daqueles lugares tão belos, cheios de quintas, campos e verdura. Que saudades, meu Deus… a terra onde fui criado e que me ajudou a ser o homem que hoje sou, a minha Sintra do norte, como cheguei a ler em livros escritos pela pena de Camilo, vejo-a hoje cheia de tanto betão!

Sinto saudades daquelas quintas cheias de arvoredo e algumas em encosta e socalcos. Estradas, algumas reais, como aquela por onde, um dia, passou Santo António, a caminho de Braga. A noite aproximava-se e aí se fez um abrigo ou telheiro e, ao lugar, onde se construiu uma linda capela, começou a chamar-se Santo António do Telheiro.

Saudades de lugares, da ermida e suas belas quintas a caminho do rio Leça. Lugares dos meus sonhos onde, pela estrada velha, que começa junto da capela da Ermida e vai para junto das margens do rio Leça, à minha passagem, espreitava e presenciava um homem martelando em cobre. Fazia-me confusão a utilização do templo para aquele fim. Tempos depois, vi o proprietário cá fora, fazendo um desenho que me pareceu ser o de uma mulher a carregar um fardo.

Correndo com os meus colegas a caminho do rio, quais pardais à solta, voando com os braços abertos, deixei-me ficar a ver este homem de bata cinzenta. Parei, mirando-o. Quando se apercebeu da minha presença, perguntou-me o que ali fazia. Ousei perguntar o que desenhava naquele cavalete (nome para mim então desconhecido). Explicou-me com entusiasmo que tentava passar para a tela todo o esforço que aquela mulher fazia ao carregar aquele pesado fardo, subindo a íngreme ladeira. Fez-me confusão o laço que tinha na testa. Perguntei o que essa mulher tinha na cabeça e o pintor explicou-me para que fim servia: o laço que ia da testa ao meio das costas servia para segurar o pesado fardo que carregava, ficando com as mãos livres para subir aquela imensa ladeira. Assim me explicou o pintor o imenso esforço que aquela mulher fazia e que tentava transmitir no esboço que eu ali via; o pesado fardo que tinha de carregar para ganhar um dia de trabalho.

Lembro este momento único, que se passou por volta de 1940 ou 1941, pois quem comigo assim falou era, mais tarde o soube, nem mais nem menos o insigne, pensador, escultor, cientista e pintor reconhecido internacionalmente, Doutor Abel Salazar. Foi então que conheci essa grande figura de quem o povo, cujo esforço e sofrimento humanos pela sobrevivência ele reconhecia, falava com respeito e admiração.

Este Homem era aquele Senhor a quem meu pai se referia como figura reconhecida em Portugal e no estrangeiro e que, embora tivesse o sobrenome de Salazar, era completamente contra o regime ditatorial em que vivíamos.
Depois da explicação dada pelo insigne professor lancei-me a perseguir os meus amigos até ao meu rio Leça em cujas águas limpas, transparentes e embaladas por tão lindas margens nos banhávamos, rodeados por barcos de recreio. E que alegria sentíamos.

Camilo Castelo Branco fala-nos nestes lugares (quão belos eles eram), onde se faziam e apreciavam belas merendas em mesas e bancos em pedra, debaixo de grandes árvores. Meu rio com belas levadas e belos moinhos, com pontes romanas, como a Ponte da Pedra e a do Carro, sonhos que recordo com amor e saudade, dos lugares onde nasci e me criei. Passado todo este tempo, vejo o meu rio transformado num vazadouro.

Este meu rio também se zangava e, no Inverno, era vê-lo a galgar as margens e espraiar-se pelos campos, tal qual um lago, chegando a transpor pontes.

As belas tradições e os encantos nunca por mim serão esquecidos. E é com saudade que recordo momentos da vida passados na minha aldeia que é hoje cidade.

A restauração de uma capela da minha terra


Capela de S. Félix (Mainça)
Pedra Verde - S. Mamede de infesta

A capela de que vou falar encontrava-se em adiantado estado de deterioração, num lugar percorrido por centenas de alunos e professores que, durante largos anos, frequentaram uma escola de Ensino Secundário em pré-fabricados. A existência de uma capela que servia de celeiro ao serviço de um lavrador junto a uma zona habitacional de luxo causava um certo desconforto. Certo dia, numa aula, alguém perguntou à professora se tinha conhecimento de Santo dedicado. Como de nada sabia, a professora, mediante a autorização do lavrador, organizou uma visita com os seus alunos ao lugar de culto com paredes deterioradas, que servia de armazém de feno e, ali mesmo, assumiu um compromisso: mediante cedência daquele espaço, professora e alunos responsabilizar-se-iam pela sua limpeza. A professora comprometeu-se ainda a procurar os dados acerca da origem daquele templo, bem como o nome do devoto. Assim começou a lavagem, sob a direcção de um técnico seu amigo, para a protecção de antigas pinturas que lá existiam. A capela, dedicada a S. Félix, foi construída em finais do século XVII ou início do século XVIII. 

Logo se pensou fazer uma exposição de peças ou bordados, rendas antigas dos pais ou dos avós dos alunos. Esta obra deve-se ao entusiasmo da professora Maria de Sá e dos seus alunos. Mais tarde, as autoridades completaram a obra com um belo arranjo da capela e da área envolvente, tornando a capela de S. Félix num lugar lindo e apetecível em Picoutos.

Lendas do leito do rio Leça (Santo António do Telheiro em S. Mamede de Infesta)

Capela de Santo António do Telheiro
S. Mamede de Infesta


A 15 de Agosto de 1195, nascia, em Lisboa, Fernando de Bulhões, sobrinho do director do Convento de Santa Cruz, em Coimbra. Cedo, seu tio o encaminhou para a educação cristã. De tal forma que, com quinze anos, Fernando de Bulhões ingressava como frade no Convento de São Vicente de Fora, em Lisboa. Foi, de seguida, para o Convento de Santa Cruz, em Coimbra, onde estava o seu tio, e lá fez os seus estudos de Direito. Neste convento, tornou-se franciscano, em 1220. Viajou muito, tanto em Portugal, como no estrangeiro.

Numa das duas missões de seu tio de Coimbra para Braga (Bracara Augusta, talvez o maior centro católico do país) tinha já mudado o seu nome para frade António. Ao passar num lugar ermo, era já noite cerrada, ele e os seus companheiros, preocupados com o avanço da noite, usufruíram de um telheiro propositadamente feito por habitantes locais para os frades pernoitarem e seguirem o seu caminho no dia seguinte. Tempos mais tarde, era já Frei António famoso na cidade italiana de Pádua, o povo daquele lugar ergueu uma capela. Ao lugar passou a chamar-se Telheiro e à capela Santo António. O lugar é hoje conhecido como Santo Antoninho do Telheiro.

Ainda em Coimbra, Frei António teve conhecimento de um novo movimento religioso que se alastrava na cidade de Assis, em Itália, a favor dos mais desfavorecidos, e organizado por Francisco, o pregador, filho de Pedro Bernardone, homem rico que entendia que o filho tinha perdido o juízo por andar com umas simples vestes a cobrir o corpo e calçando umas sandálias. A ele, juntou-se outro homem rico de Assis, Bernado de Quintaval, que perguntou a Francisco o que devia fazer para o seguir. Ao ouvir esta pergunta, o pregador ter-lhe-á respondido que bastava seguir o evangelho.

E foi assim que se deu o início do movimento dos frades da Ordem Francisca­na. Frei António deixou Coimbra e pôs-se a caminho de Itália, já Doutorado pela Igreja em Direito Canónico. Encontrou-se com Francisco de Assis, e foi viver para Pádua, fazendo parte de uma obra por todos nós reconhecida.


José Mendonça

in Lendas do leito do rio Leça

sábado, 6 de abril de 2013

Lendas do leito do rio Leça (Senhor de Matosinhos)


Capela de Esposade

Em Esposade, lugar com sua Capelinha de que se desfruta uma deliciosa paisagem do lado do Porto, o betão ameaça. Mas, no lado contrário, o campo e a Natureza convidam ao relaxamento e à observação do trabalho rural, que teima em perdurar. 
Deste lugar, nasce uma lenda. Aqui vivia D. Caio, um fidalgo que, ao procurar um lugar grande para a comemoração de seu casamento, resolveu escolher o lugar de Zinhos, do concelho de Bouças, em Matosinhos, junto ao mar (e onde se encontra o monumento ao Senhor de Matosinhos). Depois da cerimónia, o noivo, os camaradas e alguns convidados andavam em corridas com seus cavalos pelo extenso areal, quando lhes foi lançado um desafio: quem iria mais longe pelo mar adentro. O desafio foi logo aceite. Já longe da praia, D. Caio, que ia na frente, viu algo que se assemelhava a um corpo. Exigindo um pouco mais de esforço da sua montada, aproximou-se e deparou-se com a imagem de um Santo, sem um braço e oca no tronco. Logo a trouxe para o areal. Eram nítidas as semelhanças com Cristo, particularmente no rosto.

O achado foi levado para uma igreja, que existia num alto. Foi identificada como uma das quatro imagens esculpidas por Nicodemos, o carpinteiro que acompanhou os últimos passos de Cristo. Vemo-lo em certas litografias tentando aliviar o peso da cruz, que Cristo suportava aos ombros na subida para o monte de Golgotá. Vemo-lo ainda a assistir a momentos da crucificação de Cristo. Com José de Arimateia, terá providenciado para que o corpo de Cristo fosse descido da cruz, recolhido o sangue de Jesus no Graal, e embalsamado o corpo num sepulcro. Com base nesta vivência, Nicodemos esculpiu, em madeira, as imagens de CRISTO. Nicodemos era perseguido pelos judeus que lhe chegaram, até, a confiscar os bens. As perseguições aos cristãos de então eram tais que chegavam a ser destruídas pelos judeus as imagens consideradas sagradas, motivo pelo qual muitas obras eram escondidas ou lançadas ao mar, para não serem queimadas. Apercebendo-se de tal, Nicodemos, que trabalhava já na última das quatro imagens, resolveu deixar as costas da imagem oca. Lá dentro, guardou os instrumentos com que a esculpira. Desceu ao porto de Job, nas costas da Judeia, e lançou as imagens ao mar. Estas rumaram de nascente para poente, passaram o estreito de Gibraltar, entraram em pleno oceano Atlântico, e por lá se dispersaram, tendo a quarta imagem vindo dar à praia de Zinhos, actualmente, Matosinhos.

Durante o percurso, e devido à agitação do mar, despegou-se um braço do corpo, bem como a estrutura que lhe tapava a parte oca, onde se encontravam as ferramentas que talharam a imagem.

Mais tarde, naquele lugar, mãe e filha andavam em busca de madeira e encontraram um braço em madeira que, posto ao lume bem forte, não ardia. Depois de várias tentativas infrutíferas, experimentou-se colocar o braço na imagem. A naturalidade com que o membro foi encaixado na imagem não deixou dúvidas a ninguém. Era o braço que faltava ao Senhor de Matosinhos. E desde então, todos os anos, se realiza, nesta cidade, a grande romaria em louvor do Senhor de Matosinhos.


José Mendonça
in Lendas do leito do rio Leça

Lendas do leito do rio Leça (a foz)



Pedreiras no monte de S. Gens e arredores
(arquivo histórico municipal de Matosinhos)

Ainda em Esposade, depois de descermos da capela, deparamo-nos com um largo, onde está afixada uma lápide dizendo que ali se ergueu uma enorme pedreira de onde fora extraída toda a pedra para a construção do Porto de Leixões. Para essa operação, construiu-se uma linha férrea até Matosinhos, tendo os enormes blocos de pedra, que protegem os paredões, sido transportados em vagões pela linha férrea que partia de Esposade, passando por Custóias, Senhora da Hora, Estrada Exterior da Circunvalação (que era, à época, muito desnivelada, sobretudo em altura), indo até à Rotunda da Circunvalação, em Matosinhos, e seguindo a par da praia para Leixões, e que ceifou a vida a muitos pescadores da Póvoa, de Caxinas e de Matosinhos.

Para a construção do porto de mar, havia um enorme guindaste, apelidado de Titan, que assegurava a descarga daqueles enormes blocos em pedra que servem para a protecção do paredão do lado sul. Havia ainda um outro guindaste, na pedreira com o mesmo nome, que foi desmontado quando terminou a construção da doca número 1. O imponente Titan de Matosinhos está dentro do porto. A linha férrea ficou a funcionar da Senhora da Hora para Matosinhos, em tempo de praias. Após a conclusão das docas números 1 e 2, foi definitivamente desactivada.
 
Mas continuando o percurso da área de onde fora tirada a pedra para o Porto de Leixões, entramos na estrada que vai para Perafita, percorrendo talvez cerca de um quilómetro. Passamos pela ponte romana Goimil sobre o rio Leça. Vagueando por entre os campos, este rio foi testemunha do maior desastre ferroviário que, até hoje, houve no nosso país e que ocorreu a cerca de duzentos ou trezentos metros a norte deste lugar, no dia 26 de Julho de 1964.

           Era um domingo solarengo, daqueles que convidam a uma ida à praia. Naquele lugar, passava a linha férrea do Porto com destino à Póvoa do Varzim (linha entre os carris via estreita). Naquele dia, no percurso Póvoa de Varzim-Porto, o comboio vinha completamente sobrelotado. Ao passar naquele lugar, onde hoje circula o Metro de Superfície – o comboio, ao aproximar-se daquela apertada curva, ali existente, foi-se inclinando de tal modo que foi de encontro ao pilar de suporte da ponte. Ora, se a máquina a vapor que puxava o comboio e a primeira carruagem passaram, já as restantes carruagens não tive­ram a mesma sorte, sendo ceifadas pelo pilar da ponte, como uma quina­deira a cortar chapa. Naquele lugar ermo e sem telefones em abundância, morreram cem pessoas. O maquinista disse que ele e outras pessoas andaram cerca de um quilómetro até encontrarem um telefone que lhes permitisse clamar por auxílio, para tamanha tragédia.

       Tenhamos em consideração que, em 1964, não havia telemóveis, a frota automóvel era cerca de menos 25 por cento daquela que existe hoje, a televisão, apesar de existir, só se faria sentir em Lisboa, os bombeiros eram muito menos dos que actualmente existem, o material era obsoleto, as ambulâncias escassas, e o único hospital para feridos era o de Santo António (o S. João era um hospital escolar que apenas acolhia doentes de outros hospitais e que requeriam outros cuidados). Da rádio, saíam incessantes apelos para médicos e enfermeiros, dadores de sangue e pessoal que tivesse carros de caixa aberta, para transportarem feridos ao hospital de Santo António. Formaram-se filas enormes de dadores de sangue. Os primeiros médicos a comparecerem no local nem sequer traziam estetoscópio, e era pelo pulso que se avaliava se a vítima tinha pulsações. Só passada cerca de uma hora, começou a haver uma certa organização. Entretanto, o povo cortava o trânsito nas vias que dessem acesso a Custóias e à estrada do Porto à Póvoa. Do Hospital Escolar de São João, onde estaria para breve a abertura de um serviço de urgência, o povo, entrando por lá dentro, tirava instrumentos cirúrgicos, que estavam encaixotados, para que os médicos pudessem assistir os feridos no local, o que levou à inauguração daquele Serviço de Urgência, em 1964, dada a grande afluência ao hospital de numerosas vítimas daquele grave acidente ferroviário.

Quantos de nós já passaram por aquele lugar, sem nos apercebermos da inscrição que se encontra junto ao pilar causador desta tragédia e que dita assim:


Vós que estais passando
Lembrai-vos dos cem mortos
Que aqui pereceram
E cujas almas
Estarão penando.

                                   26 de Julho de 1964


Feridos, nunca se soube quantos foram, ou, pelo menos, nunca deles tivemos conhecimento, mas devem ter sido muitos.

         Mas voltemos um pouco atrás e regressemos à ponte Goimil sobre o rio Leça ou, conforme dizem vários historiadores, o rio Lethes, por onde andaram os romanos. Pinho Leal diz-nos que percorreram este rio em busca de vestígios de ouro e há quem fale da sua presença em Valongo em busca de ouro, igualmente. A Câmara deste lugar tem tapada a entrada de duas minas que os romanos designavam como Valhes Llongos.

ponte de Goimil
 
Seguindo então o percurso do Leça, desde o local que testemunhou aquele triste acidente ferroviário, vemo-lo passar pelos campos, mirando o monte de S. Brás (sítio agradável, embora um pouco abandonado), composto por duas capelas, denominadas S. Brás e S. Sebastião. Neste monte, existe uma escultura em pedra de uma figura pagã (vulgo, O Homem da Maça), cuja lenda diz que as mulheres que lá se dirigiam para pedir para se casarem e que, passado um ano, já tivessem contraído matrimónio, teriam de levar uma garrafa cheia de vinho. Caso ousassem levar uma garrafa vazia, esta partir-se-ia nas suas cabeças e, por esse motivo, o local estava pejado de vidros
 
Da capelinha que se encontra da parte sul do monte, vê-se o rio Leça serpenteando pelos campos, passando junto de vestígios de uma estação arqueológica romana e seguindo o seu curso a caminho do mar, passando pela Ponte do Carro, lugar lindíssimo com a sua azenha e os seus moinhos.Continuando o Leça, o seu percurso pelo meio de muitos prados que fertiliza com a sua corrente, entra na Quinta de Santa Cruz do Bispo, sempre tão quieto e sereno que se pode determinar para que parte corre. “É para mar” – diz D. Rodrigo da Cunha, no seu Catálogo e História dos Bispos do Porto.

        Mas por que motivo dali avança o Leça tão encrespado? Foi pela quantidade de embarcações que sulcaram as suas águas na quarta-feira, 7 de Maio de 1483 (há quase seis séculos!), quando acompanhavam a bateira que transportava, para o Convento da Conceição, vinda do Porto por via marítima, a imagem de N.ª S.ª da Conceição, esculpida, em Coimbra, pelo santeiro Diogo Pires, e que fora talhada em pedra viva com oito palmos de altura (cf. excerto de Frei Manuel da Esperança, no boletim da Câmara de Matosinhos). Esta foi a única ocasião em que o seu curso se agitou. Foi também por esta época que se formaram dois leitos. A um leito, o Povo chama o rio doce, onde as lavadeiras lavavam roupa; ao outro, chamava o rio salgado, que ficava do lado de Leça de Palmeira, e onde chegou a haver Salinas. 


José Mendonça
in Lendas do leito do rio Leça

Lendas do leito do rio Leça (divagações artísticas)



Pintado por imensos pintores, dos quais destaco Agostinho Salgado, António Carneiro e Artur Loureiro, este rio também inspirou poetas. São disso exemplo os poemas que se seguem, da autoria de António Nobre, o « Só » e de António Correia de Oliveira:

O Rio doce! Túnel de água e de arvoredo!
Por onde Anto vogava em o wagon de um bote…
E, ao sol do meio-dia, os banhos em pelote
Quando íamos nadar, á Ponte de Tavares!
Tudo se foi! Espuma em flocos pelos ares!
Tudo se foi…
                                                                           António Nobre

Ir, pelas tardes, até à fonte
Ver as pequenas a encher e a rir,
E ver entre elas o Zé da Ponte
Um pouco torto, quase a cair
                                         António Nobre

Ó águas do rio Leça!
Lanchas da Póvoa e da Foz!
No teu rimar de ambos nós,
Quem dirá onde começa
Tua voz e minha voz?!
                                     António Correia de Oliveira